Quarta-feira, 30 de Dezembro de 2009

 

Se há algo que aprendi ao longo dos anos a propósito da clássica relação quanto-mais-me-bates-mais-eu-gosto de-ti e se-gostas-de-mim-não-te-ligo-pêva, é que, ao contrário do que o senso comum apregoa, nada tem a ver com a qualidade do amor recebido ou oferecido propriamente, mas com uma ausência de amor próprio saudável que nos inibe de distinguir a verdadeira natureza da coisas e dos afectos e que tem como consequência a dificuldade de tomar as decisões certas. 



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Uma pequena amostra da confusão que o Acordo Ortográfico vai provocar em 2010.



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Sábado, 26 de Dezembro de 2009

 



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Sexta-feira, 25 de Dezembro de 2009

O momento do dia: mensagem de Natal de Sócrates com terçolho gigante no olho direito.



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Quinta-feira, 24 de Dezembro de 2009

 

Ainda há pessoas a escreverem o que pensam sem medo de perder o emprego.



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Quarta-feira, 23 de Dezembro de 2009

 

Entrei na casa e a primeira coisa que reparei foi no papel de parede. O homem está velho, está doente, está a pagar pelo que fez. É meu pai, mas de pai pouco teve. Fez-nos a vida negra, à minha mãe principalmente. Tu sabes, consegues imaginar. O 25 de Abril aconteceu estávamos na Madeira. Correu-lhe mal o dia. Foi apanhado na marginal. Foi apedrejado, teve de correr, de fugir, as pessoas a insultar, levou porrada. Não foi bonito. A minha mãe a ver, não mexeu um dedo. A vida dá muitas voltas. Com a revolução veio o divórcio e fomos à nossa vida sem olhar para trás. Passaram muitos anos e voltei à casa. Queria falar comigo, mas não tinha nada para me dizer. E, se dissesse alguma coisa, eu não poderia ouvir. Só conseguia olhar para o papel de parede a descolar. Aqui e ali faltavam bocados, o estuque a ceder. Quando a minha mãe vivia aqui a casa era bonita. Apesar de tudo.



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Hoje sonhei que estava a ver casas para arrendar, acompanhava-me um irmão, ainda criança. O sonho acaba comigo a almoçar com o Sócrates. Assim, tudo muito arrumadinho, casa, família e poder, muito bem escrito o guião.



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Terça-feira, 22 de Dezembro de 2009

 

Os prazos de investigação para os crimes económico-financeiros vão ser alargados de um para três anos. Alberto Martins, ministro da Justiça, vai fazer alterações às leis penais recentemente reformuladas pelo seu antecessor Alberto Costa. Além dessa medida, a lei do novo mapa judiciário, a do divórcio, as custas judiciais e acção executiva vão ser também modificadas. No fundo, vários diplomas que foram uma bandeira política dos responsáveis da justiça na legislatura anterior...



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Domingo, 20 de Dezembro de 2009

 

Esta chuva que não pára, esta lama nas ruas, esta humidade pegajosa no ar. Atravesso a cidade à hora combinada e estaciono em segunda fila à tua espera. No rádio, a descrição das filas selvagens nos acessos aos subúrbios desesperados. Imagino as filhas-da-putice das ultrapassagens, as rodas a chiarem. Espero os dez minutos da praxe, enquanto desligas o computador, enquanto desejas boas festas a todos, enquanto dizes uma ou outra frase feita em direcção ao elevador. Talvez desças com algum colega e falem de qualquer coisa, tu sempre a sorrir. Lá estás tu à porta do edifício a falar. Lá estás tu, vestida de vermelho a sorrir, com a camisola que nunca gostei, com o trejeito que odeio, a cabeça de lado, os cabelos a tremer. Não ouço, mas sei o que dizes na tua indiferença pelos problemas dos outros bem disfarçada com a voz grave que colocas quando dizes  – Isso não há-de ser nada. Vejo-te a caminhar em direcção ao carro por entre o trânsito, o passo confiante. Vejo-te a fechar o guarda-chuva com as unhas de plástico que sempre abominei. Abres a porta e decido que logo à noite vou sair para comprar tabaco e não vou voltar.



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O deputado do PSD Carlos Peixoto disse, esta sexta-feira, em declarações à Rádio Altitude, que quem admite um casamento homossexual pode também vir a aceitar o casamento entre irmãos, primos directos ou pais e filhos.

Uma das melhores coisas da democracia é a liberdade de expressão. Outra, igualmente boa, é a identificação dos palhaços. Afinal, qual é o verdadeiro medo de Carlos Peixoto?

Tenho medo, muito medo de gente desta. 



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Sexta-feira, 18 de Dezembro de 2009



O primeiro cigarro do dia permitiu-me ver as folhas nas árvores de uma forma surpreendente. Quando os cigarros mais parecem ácidos dos anos 70, os meus dias são melhores que as vossas noites. 


* Síndrome de abstinência: entende-se como tal o "conjunto de modificações orgânicas que se dão em razão da suspensão brusca do consumo de droga geradora de dependência física e psíquica, como o álcool, a heroína, o ópio, a morfina, etc." Caracteriza-se em geral por alucinações e crises convulsivas.  

 



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Quinta-feira, 17 de Dezembro de 2009

Ainda que coxa foi aprovada. Até que enfim, caramba. 



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Passava pouco das cinco, a hora do ajuste de contas do dia. As pequenas notícias quotidianas, os amores e ódios, as patetices. Da cozinha vinha o cheiro de comida, na sala, à volta da pequena mesa de café, as mulheres da minha vida.

 

O dia vence-me. Apago as luzes. Deslizo para a cama sem fazer barulho. Na quietude da casa, a cama a abanar, eu a procurar o corpo debaixo dos lençóis, a acalmar o pesadelo, a sossegar como fazem as mulheres. Também eu afago e afasto as coisas terríveis.

 

O bibe encardido, os joelhos esfolados, a minha pasta vermelha com os livros e as pautas do piano a passearem na lentidão do meu corpo a crescer. Na sala, a planta que todos juravam que tinha um comportamento suspeito. Movimentos súbitos, parecia que ouvia as conversas. No sofá observávamos a planta demoradamente. Parecia inofensiva, tinha uma flor cor-de-rosa.

 

O corpo sossega, o pesadelo diluí, mas o espelho encostado à parede continua em agonia.

 

As mulheres estão bem-dispostas, demoram-se na conversa. Os olhos verdes queixam-se. Ou o tecto é muito baixo ou o candeeiro com pingentes é muito grande. Incontáveis as cabeçadas de todos. Cada acidente, uma chuva de sons de cristal, uma testa esfolada. Que isto era bom era para prever terramotos, afiançam os olhos verdes. E os pingentes a abanar.

 

O espelho pára e eu caminho para o sonho.

 

Mais um movimento suspeito. Os olhos castanhos garantem que a planta estava virada para a direita e agora está no sentido contrário. Olhamos demoradamente a planta, em silêncio. Suspeita, suspeita. Sacana da planta, estamos nós a ficar doidos varridos?

 

Deslizo por entre os lençóis, encosto-me ao corpo tépido.

 

Olhos castanhos surgem triunfantes com uma enciclopédia de plantas, percorremos os nomes em latim. Percorremos as fotografias à procura de uma flor cor-de-rosa.

 

Acordo de madrugada e vejo a mensagem. Houve um tremor de terra, respondo que não senti nada, mas depois recordo o pesadelo, a cama a estremecer, o espelho com vida própria.

 

E os pingentes a abanar e nenhuma cabeçada. A planta, a sacana da planta.

 

Ligo às mulheres da minha vida. Ninguém atende, nem uma vez nem duas vezes. Sinto os pingentes em mim. Os lençóis são camisas de força. Finalmente a voz do outro lado. Que sim, que os estendais abanaram todos, silvos na noite, pareciam comboios a chegar à estação, mas os candeeiros estavam quietos, ela bem olhou para eles. E, se os candeeiros não mugem nem tugem, não há-de ser nada. Pior são os que têm vida.

 

E os pingentes a abanarem. A sacana era uma planta carnívora, uma cobra vegetal. Enganou-nos bem.

 

Sossego e vou ver as notícias, os amigos, as pequenas histórias. Tudo a olhar para os candeeiros mas os candeeiros não abanam. 

 

Isto era bom era para prever terramotos, diziam os olhos verdes, e o terramoto a acontecer às cinco da tarde.



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Era uma noite, demasiado quente para o mês de Março. Caminho pela rua à procura da morada. Numa entrada de um prédio vejo um bando de gatos a comer e por segundos imaginei quem seria que os alimentava. Das tigelas subia um vapor de solidão mas podia estar enganado. De súbito, vejo, deitado num degrau, um gato com o corpo num ângulo estranho. Pensei se não estaria morto. Tento chamar a atenção do bicho com pequenos assobios. Em vão. Ao lado do gato morto estava outro de pêlo preto que dá com a pata no cadáver. Pancadinhas suaves. Isto deixa-me alerta. Como se tivesse visto um bando de pássaros silenciar-se, prenúncio de tragédia. Pássaros em terra, tempestade no mar. Ouço passos na rua, duas sombras em movimento, e decido continuar caminho. Só uns metros à frente percebo que o prédio que procuro é o do gato morto. Volto atrás. Acendo um cigarro e olho novamente para o animal. O gato preto continua a dar pancadinhas. Não arreda pé. Inspiro calmamente no silêncio da noite quente. Apago o cigarro e toco à campainha. Subo no elevador do prédio antiquado. Na sala está o velho encenador de cabelos brancos e três elementos da companhia. Fico numa posição desconfortável, o encenador insiste que fique sentada ao pé dele mas isso obriga-me a que nunca veja todos os rostos de uma só vez. Gosto daqueles rostos. De alguma forma apaziguam-me. O velho encenador fala com voz de profundeza escorreita. Ouço a sua respiração de canário, o esforço de quase não vida, aquele silvo no meio das frases. Despeço-me como se fosse a última vez. Saio para a noite a escaldar e os dois gatos estão sós com as tigelas vazias. Um morto, o outro a dar pancadinhas no cadáver.

 



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Quarta-feira, 16 de Dezembro de 2009

 

Se a 2ª circular existe, onde fica a primeira?

 

 



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A mão estende-me a chave do quarto pela janela do carro sem dizer uma palavra. Vejo a figura desaparecer no átrio do hotel na explosão das luzes amarelas. Continuo a bebericar o champanhe. Rodo a chave entre os dedos. Sinto a placa de metal recortada. Quarto 702. Dou uma passa e fecho por instantes os olhos. Esvazio o copo, atiro com a beata pela janela, abro a porta. Não digo nada e já não quero saber da cara do motorista. No passeio componho o casaco e passo a mão pela cabeça. Estou novamente em mim. Alguém dizia que há mais distância entre nós e nós próprios do que entre nós e os outros. Neste momento essa distância esbate-se, eu e eu estamos lado a lado, finalmente, como dois cães de fila atentos. Subo a escadaria e entro no hotel ao mesmo tempo que uma mulher bela. Não consigo desviar o olhar. A mulher continua imperturbável, sou invisível, não existo. Em fracções de segundos percebo que não tem uma ponta de altivez no olhar, antes uma calma desconcertante, embora o rosto não seja bondoso. Uma estátua de mármore humano. Por isso também não deste mundo, do céu e da terra. Procuro o elevador, ouço os meus passos no chão, olho rapidamente para a recepção mas sou invisível, não existo, os empregados estão a atender outros clientes. Ouço jazz, provavelmente executado por uma banda num bar que não chego a ver. No elevador, desejo que no quarto estivesse à minha espera a prostituta de luxo. Mas, em vez da estátua, tenho um corpo. Penso no corpo e o desejo aparece em ondas. Sinto-o no estômago. O desejo invisível.

 

(cont.)



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Nem de propósito, depois do post de ontem, estive hoje perto da ponte 25 de Abril. Descubro com assombro que alguém fez três graffiti no tabuleiro do comboio (!), visíveis a uma distância considerável, com as enigmáticas palavras KHY1! REI, KHJ1! REI e REI! KAY1!. Dão-se alvíssaras a quem descodificar isto e um café a quem enviar fotos, o meu telemóvel não tem pedrigree suficiente para a qualidade que o blog pede.



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Terça-feira, 15 de Dezembro de 2009

 

Hoje passei o dia a pensar em nostalgia e no seu significado. Depois de umas pesquisas fundamentais para compreender o que é isso da nostalgia afinal, acabo à mesa num jantar onde a palavra também esteve presente – nas histórias dos que já partiram e nos percursos de cada um –, e que finalizou com a história macabra de um suicídio ocorrido no Castelo de São Jorge há poucas semanas. Um rapaz, 19 anos, que saltou da muralha e faleceu no local. Cheguei à conclusão que, em mim, nostalgia é sinónimo dos anos 80. Foi onde cresci e as minhas mais importantes memórias residem. Dois dos eventos que melhor recordo ocorridos nessa década foram os suicídios em massa num inverno em Berlim e os constantes, ao longo dos anos, na ponte 25 de Abril. Lembro-me muito bem da história de um professor da escola secundária. O carro foi encontrado na ponte, ninguém o viu saltar, nunca foi encontrado o corpo. Ainda houve dúvidas se teria sido suicídio ou uma simulação. Uns anos depois foi a vez de uma rapariga saltar da ponte. Se a minha memória não falha, era Verão, penso que era Agosto. A rapariga estava no carro com o pai e a madrasta e seguiam no sentido Almada - Lisboa no regresso de umas férias no Algarve. O carro imobilizou-se no trânsito, ela abriu a porta, percorreu alguns metros no tabuleiro da ponte e saltou. Sem uma palavra. Chamava-se Sofia e tinha 13 ou 14 anos. Este suicídio impressionou-me muito. Guardei a folha de jornal durante muito tempo. No artigo explicavam com uma infografia que, se uma pessoa saltasse da ponte, os 70 metros eram suficientes para a morte ocorrer em pleno voo. Quando o corpo embatia na água, o mais provável, é já estar cadáver. Aparentemente, a pessoa sucumbe de ataque cardíaco. Estes são apenas dois dos casos que recordo com mais nitidez, havia suicídios todos os dias. Cartas no tablier, carros parados na ponte, corpos que apareciam e outros não. Mas, uma coisa era certa, nos anos 80, quem saltava tinha como destino a campa ou ir alimentar os peixes. A seguir ao 25 de Abril o suicídio na ponte parecia uma coisa corriqueira, tal era o número de casos. No entanto, depois de ouvir muitas pessoas ao longo dos anos, cheguei à conclusão que deviam suicidar-se tantas pessoas depois como antes da revolução. A forma como se falava, ou não, do problema é que diferia. Houve um tempo onde existia censura e outro onde estes casos não só apareciam nos jornais como eram amplamente publicitados. Depois as coisas complicam ainda mais. Parece que há quem sobreviva aos 70 metros. Em 2003, um homem de 28 anos atirou-se da ponte e sobreviveu apenas com uma costela fracturada e uma ferida na mão. Foi recolhido por uma lancha da polícia marítima e transportado para o hospital. Há o relato de outro sobrevivente, que não caiu na água, mas no mercado Rosa Agulhas em Alcântara. Depois de uma zanga com a namorada, ameaçou atirar-se da ponte e cumpriu. Deu cabo do telhado do mercado mas safou-se com uns arranhões. Foi resgatado pelos bombeiros e, facto insólito, saiu pelo seu próprio pé depois de uma queda de 60 metros. Ainda houve o caso de um tipo que saltou mas ficou preso na estrutura da ponte e para ser resgatado provocou o caos no trânsito em Lisboa. Mas mais caricato foi o caso ocorrido em 2006 no ano em que a ponte fez 40 anos. Um sem-abrigo em protesto esteve pendurado por uma corda durante horas a exibir um cartaz com os dizeres "Sem amor, sem abrigo!". Provocou o caos na ponte e uma fila de carros com 14 km mas foi resgatado pela GNR com vida.

 

Há quem seja fanático e não lhe escape nada nos blogs. Eu confesso que o fanatismo atingiu-me na leitura dos comentários. Qualquer site, blog, ou fórum serve. Se há comentários, logo é bom. Tudo começou quando fui parar a uma caixa de comentários no site dos TOC (Técnicos Oficiais de Contas). Desde aí troquei os textos e posts pelas caixas dos comentários. São um manancial de situações, formas de estar na vida, opiniões, umas sábias, outras tresloucadas, mas que, em suma, são o retrato mais fiel que encontrei da realidade democrática. Qualquer um pode revelar o que carrega na alma e, claro, há de tudo como na farmácia. Resta dizer que, para quem escreve ficção, não há crise de criatividade que não sucumba perante uma caixa de comentários das boas. Também tenho a sensação, mas ainda não consegui comprovar definitivamente, que o nascimento desta forma de comunicação proporcionou às portas das casa de banho públicas um asseio maior.

 

Este comentário é de 2006. Encontrei-o hoje num fórum sobre o suicídio:

 

Vivi durante muitos anos numa vila piscatória quase por baixo da ponte da Arrábida. Era frequente alguém se atirar lá de cima para se suicidar, por acaso nunca (felizmente) assisti a ninguém a saltar, mas quando se ouvia muito alarido na rua muitas das vezes era alguém que tinha saltado para as águas do Douro e lá iam os pescadores tentarem trazer o suicida para terra o mais rápido possível. Ouve casos de pessoas que escaparam graças ao rápido auxílio dos pescadores, outras caiam na estrada e não tinham hipóteses, a Ponte da Arrábida tem 75 metros para o nível médio das águas do Douro. São pessoas num estado de desespero muito grande, outras têm problemas psicológicos. Conheço o caso de uma senhora que vivia nas redondezas, dirigiu-se à ponte para saltar, mas, como não conseguiu subir o varandim foi a casa e voltou com um banco e saltou.

 

 



publicado por afonso ferreira às 19:45 | link do post | comentar | ver comentários (1)

 

 

Primeiro desenha-se com a lâmina uma linha fina, quase invisível a olho nu. Muito lentamente para não haver hipótese de erro. A lâmina tem de estar afiadíssima. A régua, ou objecto semelhante, convém ser de metal ou material idêntico, algo que não deforme com a passagem da lâmina. O primeiro corte tem de ser feito com precisão cirúrgica. O segundo corte é feito exactamente da mesma forma. E assim, sucessivamente, até o corte estar completo. O resultado costuma ser perfeito. Um corte imaculado, exacto de um ponto ao outro, sem fugas, sem hesitações. Pode-se avaliar uma pessoa pela forma como corta. A rapidez é inimiga da perfeição. A paciência compensa. Quando era rapaz era avaliado pelo meu desempenho no desenho. Como era um desastre, usava papéis coloridos cortados de forma perfeita que eram sobrepostos. O resultado era bastante apelativo e costumava ser elogiado por isso. Estava, então, longe de imaginar quão útil se revelaria a técnica de corte desenvolvida em tão tenra idade. Enquanto executo o corte, evoco o meu passado longínquo, quatro décadas passadas e sonho. Faço uma pausa para fumar. Inspecciono o quarto à procura de um alarme  de incêndio. Nenhum à vista. Hesito antes de acender o cigarro e procuro também na casa de banho contígua ao quarto. Não encontro nenhum. Não é o alarme que me assusta, é o sistema de aspersão de água que pode colocar em risco toda a operação. Abro a janela e acendo o cigarro. Sinto a solidão a pesar-me. Da janela vejo o Empire State Building a dois quarteirões de distância. Estou no 59º andar mas, ainda assim, para ver o topo do edifício, tenho de inclinar a cabeça num ângulo estranho. Só hoje, ao quinto dia, compreendi que as cores das luzes no topo do edifício mudam consoante o país a homenagear. Percebi que as luzes não mudavam aleatoriamente, como julgara inicialmente, porque hoje o edifício está vestido de vermelho, amarelo e verde. As cores da bandeira portuguesa para comemorar o dia 10 de Junho. Não deixei de sentir um murro no estômago, não deixa de ser um sentimento pueril, e mais pueril é admiti-lo. Uma pontinha de orgulho saloia, aqui está a nossa bandeira visível por uma noite na capital do mundo. Uma pessoa transporta a pátria sempre dentro de si. Até aqueles que a odeiam e fugiram para não mais voltar. As nossas raízes acompanham-nos até à morada final. Quanto mais velho estou mais penso na questão da identidade, como se arrumar a questão no meu espírito me trouxesse paz. Uma paz podre, é certo, mas pelo menos a ilusão de uma certa serenidade. Também faço jogos para ver se a minha memória está intacta. Todos os livros de um autor, os nomes dos meus colegas de há vinte anos atrás, o nome das mulheres com quem dormi. Todos os nomes e rostos por ordem cronológica. Se não recordo um que seja fico angustiado. Mas se a memória não falha sinto o sabor doce da serenidade. Tudo arrumado no sítio devido. Atirei o cigarro para a sanita e abri as janelas de par em par para arejar o quarto. Raios partam as malditas leis antitabaco. Regresso ao trabalho. Na mesa está deitado um quadro emoldurado. Há que retirar a serigrafia com o mínimo de desgaste, e isso requer um trabalho minucioso e sem falhas. É neste trabalho que estou concentrado há uma hora. Já não falta muito para acabar. É uma pena ter de tomar esta decisão. A própria moldura, um trabalho encomendado pelo coleccionador a um mestre na arte, vale bastante dinheiro. Ao vender a peça o coleccionador abusou no valor final devido a este detalhe, o qual não tentei negociar. Ainda assim estava a negociar a um preço bastante abaixo da cotação. É uma peça belíssima da Vieira da Silva destinada a um comprador em Lisboa. O trabalho minucioso que executo vai evitar pagar as taxas alfandegárias. A moldura segue na bagagem de um artista plástico que viajou comigo para a apresentação da galeria na feira de arte. Trabalho perfeito. Digno de um mestre. Amanhã estará em Lisboa em segurança. Seguirá na alfândega num canudo, enrolado no meio de dois posters foleiros de Nova Iorque, souvenirs que se compram por 5 dólares em qualquer esquina da cidade. Em Lisboa basta fazer o trabalho inverso. Colocar novamente a serigrafia na moldura. Será vendida acima do valor de tabela, porque supostamente foi comprada a um coleccionador que a estimava muito e os impostos e taxas alfandegárias, que não paguei, serão devidamente cobrados. Com tudo isto, será possível fechar este ano com lucros bastante satisfatórios.

 


 

 



publicado por afonso ferreira às 17:12 | link do post | comentar

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