Hoje o taxista tinha realmente um humor peculiar. Imitava na perfeição um gato a assanhar-se e dizia aqui há gato aos berros, muito satisfeito consigo próprio.
Não confiar em ninguém que jure não recordar nada no dia seguinte a uma bebedeira.
Quando mudei para a minha casa actual ia ao café todos os dias e não via nada de especial. Depois comecei a pensar que o homem do café era excessivamente simpático. Algum tempo depois pareceu-me que tinha um olhar sinistro. Durante uma certa altura não o vi mais e continuei a frequentar o café que, assim como assim, sempre tem umas empregadas atenciosas. Um dia, ao passar pela baixa, observei uma situação na qual fiquei na dúvida se o homem era traficante de droga ou de armas e nunca mais coloquei os pés no estabelecimento. Uma vez fiquei sem tabaco e voltei em desespero de abstinência. O homem estava a atender uma família portuguesa que na tentativa de proferir um elogio insultou-o do pior modo por ser estrangeiro. O homem limitou-se a sorrir e nada disse, num gesto de elegância como poucas vezes vi, eu fiquei com as tripas revoltadas e para demonstrar de que valores sou feito voltei a frequentar o café assiduamente todas as manhãs. Entretanto descobri que vai ser pai. E voltei a reparar no olhar esquisito dele. Passei a alternar as minhas idas ali com outro café aberto recentemente na mesma rua mas onde sou obrigado a ver um cartaz a anunciar domestic soup. Hoje de manhã, ao mexer a colher no café em pequeninos círculos indolentes, ponderei se já é lícito chamar relação a isto.
O mercado negro emotivo não difere do económico. Em regra é mais barato, mas raramente é original e há uma forte probabilidade de ter sido furtado.
Hoje foi a vez de ouvir a teoria dos carros em segunda fila. Segundo o taxista – óculos tartaruga encavalitados no nariz aquilino, cabelo cortado à escovinha, ágil nas ultrapassagens –, se o estacionamento em segunda fila acabasse resolvíamos o problema do trânsito em Lisboa.
Não há males de amor que não acabem em abundância.
O comerciante não tem personalidade, tem comércio; a sua personalidade deve estar subordinada como comerciante, ao seu comércio; e o seu comércio está fatalmente subordinado ao seu mercado, isto é, ao público que o fará comércio e não brincadeira de crianças com escritório e escrita.
Fernando Pessoa, Teoria e Prática do Comércio
Sei que estou à beira de uma mudança, e a imagem pode ser a de um precipício, mas parece-me que vou dar um passo para cima. Vou cair para o céu e estatelar-me nas nuvens, sem misericórdia.
Praga da Figueira, 1885
Se me pedirem para escolher o mercado mais bonito de Lisboa, não hesito a dar a resposta. É o mercado da Praça da Figueira. Demolido em 1949, foi com assombro que o descobri em plena adolescência numa gravura. Sei na ponta da língua a história do mercado. Recentemente juraram-me que depois de desmatelado tinha seguido para África mas nunca consegui verificar essa informação. Se existem muitas vidas, tenho a certeza que numa anterior andei por aqui, provavelmente a comprar um coelho para o arroz de cabidela. O mercado começou por ser a céu aberto, passou por várias remodelações, da luz eléctrica e arborização à estrutura de ferro com gradeamento e oito portas. Nos Santos Populares transformava-se num autêntico teatro. Era aqui a grande festa, vinham pessoas de todo o lado.
Mercado da Praça da Figueira, talhos e salsicharias em sábado de Aleluia, 1907
“(Maria Eduarda) viera indignada da Praça da Figueira, quase com ideias de vingança,
por ter visto nas tendas dos galinheiros, aves e coelhos apinhados em cestos, sofrendo (…)
as torturas da imobilidade e a ansiedade da fome.”
Eça de Queirós, Os Maias
Há pessoas que não dialogam, fazem perguntas. Umas atrás das outras. Parece um interrogatório disfarçado de conversa amigável.
Calhou descer a colina, devagarinho, com o sol a bater inclemente. Rua abaixo, a deslizar entre o jardim, o trânsito, o hospital, as lojas de revenda, os móveis em segunda mão, o caos do mundo. Depois o Martim Moniz, não tivesse ele ficado entalado na porta e não estaria aqui a pisar esta cidade em forma de implosão.
Na realidade, parece que este bocado urbanístico ganhou o gosto pela tradição e ficou todo ele entalado numa porta. Os prédios encavalitados, as escadarias, a cacofonia, a igreja, os centros comerciais, o hotel, a obra-prima da EPUL. A imagem perfeita do desleixo a que esta cidade foi votada, parece que faltou o cimento e foi tudo corrido a agrafos.
Sábado à noite entro no táxi e peço para seguir para a estação do Cais do Sodré. O taxista pergunta se é para a estação de comboios e eu respondo que não. É para a outra, a dos barcos. Isso anima-o, quer saber se vou para Almada, e como respondo afirmativamente começa a desfiar o rol de parentes que residem na outra margem. Não tem menos de setenta anos e na cidade e nas ruas que sabe o nome de côr e que faz gosto em saber se conheço, tem uma tia, vários primos, uma sobrinha. Almada desenvolveu-se muito, conta-me ele. Prédios altíssimos, tudo novo e moderno, quem viu aquilo quando ele era gaiato e agora. Recorda-se bem das férias que passava junto ao mar na colónia. Ele e os primos, dois meses inteiros. Gostava muito de viver em Almada, sempre tinha a família perto e uma casa bonita, mas são tão caras. Ainda andou a ver mas não era para o seu bolso, contentou-se em viver sozinho numa casa antiga em Campolide. E Alcochete? Se conheço Alcochete, pergunta o taxista. Nasceu lá, veio morar para Lisboa com onze anos. Fartou-se de chorar, não queria vir, mas a vida do pai era toda tecida na capital. Não tinha querer, chorou, chorou, mas teve de fazer as malas. Se tivesse um dinheirinho também não se importava de ir para lá morrer.
O barco aproxima-se da outra margem e vejo uma caravela ancorada em terra e prédios e prédios a riscar o horizonte. No meio dos passageiros surge um homem a berrar. Portugal fez tanta obra e deu tudo. E nós aqui tão pobres sem nada. Portugal fez tanta obra.... – diz ele numa ladainha circular desesperada. Por telefone oferecem-me indicações preciosas para chegar ao destino. Há que apanhar o metro. Há que perceber onde é o estupor, comprar o bilhete para o dito cujo, perguntar a estranhos se vamos na direcção certa. O metro serpenteia pela cidade como uma cobra veloz num espanto mudo. As estações, em revolta com o asfalto, sucedem-se umas às outras – 25 de Abril, Gil Vicente, São João Baptista –, como tesouros do progresso.
Publicado no Delito de Opinião.
Deus não existe mas castiga.
A caminho do mercado a minha amiga pede para pararmos na pastelaria. Escolhe cuidadosamente na vitrina o que comprar, pergunta pelo recheio, acaba a escolher duas merendas para levar. Na rua entrega o pacote ao homem que está sentado no chão. Mal viramos costas desfaz o embrulho em dois tempos. A minha amiga já o observa há algum tempo, no Verão tirita de frio tal é a carência. A minha amiga é boa pessoa e o homem tem fome, muita fome.
Há dias assim, compridos, um não acabar de pequenas ficções. Parece que cumprimos uma volta ao mundo quando colocamos a chave na porta de casa e saudamos o silêncio dos móveis, a paz dos objectos domésticos. Quis o calendário que hoje tivesse muitas celebrações à minha espera. Muitas casas, muitos rostos, muitos abraços. Estamos todos e fazemos o ponto da situação, revemos conversas, por vezes não dizemos algo também, combinamos encontros, aproximamos futuros e desejamos que o tempo pare simultaneamente, damos o melhor de nós, tranquilizamo-nos com a presença dos outros. Construímos algo, alicerce de ponte futura.
Não tenho uma grande explicação para o facto, mas existe em mim uma tendência para associar os meus melhores dias à quantidade de viagens realizadas. Uma conta de somar estranha, mas ainda assim não prescindo dessa contabilidade. Hoje foi um dia bom. Viajei num barco, três carros com condutores distintos e um taxista eficiente que ajudou-me a encontrar um destino.
A importância de um sobrinho
Três senhoras já com bastante idade, certamente septuagenárias, conversam numa paragem de táxis no Campo Pequeno, em Lisboa. Pela conversa, percebe-se que são viúvas – ou talvez nunca tivessem chegado a casar. Vivem sós. Enquanto aguardam pelo táxi que chamaram por telemóvel, vão trocando impressões sobre as dificuldades que enfrentam no dia-a-dia, às vezes em coisas aparentemente tão simples como o transporte dos sacos de compras de supermercado.
Às tantas, diz uma delas:
- Quem tem um sobrinho tem tudo.
As outras acenam, em sinal de imediata concordância. Talvez por também terem sobrinhos. Ou talvez por não os terem.
E é quando menos esperamos que damos por nós a falar de deus. Ou dos que sentem fé. Neste ciclo inexorável de quedas, força e viagem. Ou da força militar, que isto é bonito não concordar até precisarmos dela, que deus se existe anda atento. Ou o porquê das pessoas casarem, mais papel, menos papel. E depois falamos da noite, da mudança de temperatura, os relâmpagos de ontem, a lua cheia e a ambulância a passar na rua com a sirene ligada e na colina em frente tanto movimento e as nossas palavras leves como um pardal suspenso no amanhã.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
Agora e na hora da nossa morte - Susana Moreira Marques
Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES