A minha boa educação (e interesse na vida) não admite que ataque alguém. Mas se sou atacado acredito piamente na devolução da ofensa com juros. Acredito também na ideia das pessoas serem (re)educadas pela via da punição justa dos actos cometidos. Agora só um momento que vou ali arrancar uns olhos e já venho.
Rodo o globo várias vezes, percorro mapas, comparo latitudes e valores, espeto o dedo ao calhas no mundo. Tenho tempo, dinheiro e vontade. Posso ir a qualquer sítio dos cinco continentes, com alguns constrangimentos é certo, como a data para regressar, mas ainda assim diria que é uma oportunidade rara. Vasculho tudo, e depois viro-me do avesso também. Na verdade, quando tudo é possível, resta-nos a escolha do nosso desejo mais sincero.
Quando vi o nome no mapa não hesitei mais. A escolha recaiu na única cidade do mundo que habita dois continentes. Há um motivo muito forte para ter sido a eleita, há dois anos que escrevo um texto em que parte da acção está ligada a esta cidade que nunca percorri. Vejo fotografias, mergulho na história, nas guerras, nas mudanças de nome, nas datas, aprendo palavras estranhas que tenho de escrever num caderno sob pena de não as decorar. Decido. Os planos transformam-se em objectivos.
Por último, esta viagem fecha um ciclo, o das cidades das sete colinas. Depois de Lisboa – cidade-partida eterna em mim –, e Roma, onde me perdi ao tentar encontrar o regresso, viajo em direcção à última cidade. Em tempos foi chamada de Cidade das Sete Colinas, Nova Roma e também Porta para a Felicidade, o que não deixa de ser um bom presságio para a minha viagem maior.
Nunca esteve tanto na ordem do dia apregoar virtudes e concretizar actos vis. Sinal dos (maus) tempos que vivemos.
Enquanto os planos parecem finalmente chegar a bom porto e o dia se aproxima, tenho uma sensação cada vez mais forte de que muita coisa ainda vai acontecer até partir. Do tipo de coisas que altera mesmo os planos mais sólidos.
...
Com o aproximar da viagem, o velho ritual – horas gastas a percorrer mapas com os olhos e os dedos. Nomes, estradas, caminhos, itinerários, cidades, regiões, rios, países, mares. Chegarei para tudo?
As pessoas dividem-se entre as que odeiam segundas-feiras e as que não suportam domingos.
Eram as sete e meia da tarde. E eu sorri-lhe ao ver que me sorria, mas fi-lo apenas por educação. Sorri, mas era me impossível esquecer que ainda há meia hora estava angustiado como nunca no terraço ao lado,
na minha casa, com os nervos completamente destroçados pelo domingo. Os domingos são horríveis. Se ainda por cima são de Agosto, a combinação não pode ser mais terrífica. E embora venham e vão, isso de pouco consolo serve, pois voltam sempre. Ainda que, diga-se a verdade, por muitos domingos de Agosto que voltem, dificilmente encontrarão um pior do que hoje, nunca voltará a ser tão pesado o ar nem estarão tão vazias as ruas desta povoação como estavam hoje às quatro da tarde quando em minha casa, sentado no meio do terraço que dá para o normalmente – hoje a esta hora deserto – concorrido Passeo del Mar, senti um tremor estranho, seguido de uma dificuldade tão enorme de mover-me que até me senti incapaz de recorrer a este caderno dos três tucanos. (...)
Longe de Veracruz de Enrique Vila-Matas não é um livro inesquecível nem sequer será lembrado como um marco nas minhas leituras, mas é, talvez, se a memória não me falha, o livro que contém as melhores descrições de domingos que já alguma vez li. Sem ser planeado, comecei a ler precisamente num domingo quente à beira mar e conto chegar à última página num próximo.
Que fará aí esse homem. Que fará disfarçado de planta. Na realidade talvez tudo isso não tenha nada de estranho ou de especial e a culpa seja simplesmente dos domingos, que são horríveis. São muitas as pessoas que, por causa disso, os acabam transtornadas, acabam muito mal os domingos. São horríveis, sim, os domingos...(...)
Vivo num estranho mundo em que os mesmos que cometem infidelidade com pessoas casadas são capazes de evocar regras de etiqueta quanto a festas e lugares à mesa.
Há uns tempos acusaram-me de só andar a escrever parágrafos, ainda contornei a questão, vida atribulada, coiso e tal, não há tempo para nada, pois. Agora já vou na fase de dedos em riste espetados no meu nariz, não escrevo uma linha, é uma vergonha, e por aí fora. Pois é. Assim como na escrita tenho a vida em parágrafos.
Uma vez em casa de Botero, misturei selvaticamente erva com genebra, e enlouqueci. Um dos negros, que por acaso era parente de Botero, um colombiano que nunca perdia o humor, perdeu-o comigo. Recomendou-me que deixasse de beber. Mantive por uns minutos a compostura, algo assustado pela repentina seriedade do meu amigo colombiano. Voltei a perder essa compostura quando ouvi uma senhora dissertar sobre um livro que falava de lojas cor de canela e fora escrito por um judeu assassinado por um oficial nazi. Ouvir isto provocou-me um riso frouxo, o riso do ignorante que não só não percebe nada como, ainda por cima, julga, por causa da pujança do verde na sua retina de drogadozinho ocasional, que está na selva mais pequena do mundo e que esse mundo é o reino da abundância e que aí a vida só existe para as folhas. Abismado em semelhante delírio, não é estranho que o meu riso também o fosse e que toda a gente me olhasse reprovadamente e com enorme desconfiança. Decidi afastar-me dos seus olhares e fui dançar. Fi-lo com grande arrojo e pisando várias pessoas e quando me cansei, entrei na casa de banho, roubei o pente, deixei a marca no livro de Tchékov, proclamei o meu desprezo mais absoluto por qualquer tendência artística e acabei por ser convidado a abandonar a casa dado o meu estado de extrema embriaguez.
– Ao menos eu sou uma folha que está viva – disse-lhes à maneira de enigmático protesto pela expulsão.
– Só te falta uma pistola para seres Goebbels a disparar contra a cultura – disse-me, muito agastado, o meu amigo colombiano.
Despediram-me da forma mais vergonhosa. Com um monumental pontapé no cu. Caído no patamar e não querendo aceitar que fora humilhado, rocei com os meus dedos o bolso onde guardara o despojo de Botero, o meu grande troféu: o humilde pente roubado. (...)
Longe de Veracruz, Enrique Vila-Matas
... e por falar em coincidências e memória, eis que um casamento nunca vem só. Fica mais um encontro marcado no grande bar do outro lado.
... é tudo uma questão de boa memória.
Já está, Setembro já está lixado. E não é um funeral.
Olhei para o calendário e percebi que não vou a um funeral nem a um casamento há seis meses.
Acordo, percebo que dormi oito horas pela primeira vez em cinco meses, e saio ainda ensonado para tomar o pequeno-almoço. Pelo caminho percorro o quotidiano – as obras na casa do primeiro andar; o segurança dos juízes mais atento às raparigas em flor do que à insegurança; um homem de ar cabisbaixo; o eléctrico a ranger; os turistas a ruminar colina acima, colina abaixo. No café tenho direito a uma pequena peça de teatro da qual usufruo enquanto saturo as veias de cafeína. A conquista amorosa a decorrer para gáudio das minhas pálpebras pesadas. Talvez por ter lido ontem um texto que me exasperou, talvez por as voltas na minha própria vida guiarem a minha atenção, dei por mim a assistir à rábula e a interrogar-me por que razão as pessoas revelam o seu lado pior quando tentam conquistar alguém, em vez de oferecerem o seu melhor. Isto agora ficava a matar com uma citação do Bauman mas para isso precisava de mais café no bucho.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
Agora e na hora da nossa morte - Susana Moreira Marques
Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES