É naquilo que não te digo que residem todas as minhas palavras.
I. Olhar para o desejo à semelhança de uma imagem projectada no ar. Doer uma omoplata e o espaço entre o pescoço e o coração. Não dormir e sonhar acordado. Estender o tempo em círculos nocturnos perfeitos. Despedidas em ruas sujas de restos febris e olhares espantados. Cair da cama abaixo. Espalhar moedas e isqueiros nos interstícios das palavras. Dar cabo do estômago com cafeína.
II. Os dias alongam-se e há horas impossíveis para tudo. Tu tens é sono, sussurra o escaravelho que assentou arraiais na minha escrivaninha. Agora não me doí nada. Talvez uma impertinência aqui ou acolá, nada de monta. Há algo de asséptico em ser bem sucedido. Substituir sangue e lágrimas por suor e saliva, coisas sem valor por pedraria valiosa. As imagens continuam a chegar – escadas rolantes paradas, ondas, instantes mais ou menos felizes, loucuras, mazelas, pontas por atar, pequenos nadas de uma comunhão.
"Domingo irei para as hortas na pessoa dos outros.
[...] Haverá sempre alguém nas hortas ao domingo."
Álvaro de Campos
São muitos e caminham em várias direcções numa alegria furiosa. De vez em quando, a avenida é cortada por ruas estreitas de sentido único e os táxis são respeitosos. Nada de buzinarem à multidão. Ele conta-me, enquanto tentamos sobreviver à turba dos corpos em festa, que no país onde esteve recentemente é ao contrário, mesmo que não haja trânsito os peões permanecem medrosos no passeio à espera do sinal verde. Morrem que nem tordos na estrada. Nunca viu um povo respeitar tanto os sinais. Eu lembro-me logo dos mortos numas férias fatídicas há mais de uma década. O que mais me impressionou foi o homem das compras no mercado. O cesto carregado de frutas espalhado no alcatrão e a minha incredulidade perante a distância entre o carro de vidro estilhaçado e o cadáver. O homem mortíssimo, as romãs a rolarem pelo asfalto num dia quente e límpido, as palmeiras espantadas na estrada, e tão pouco sangue, apesar de tudo, a lembrar que para o fim, uma manhã de Verão basta.
Nem há um dia cheguei à cidade e o pior confirma-se em todo o seu esplendor – está tudo na mesma.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
Agora e na hora da nossa morte - Susana Moreira Marques
Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES