Tal como a Clarissa acordei com o nascer do sol, atravessei ruas e avenidas e fui comprar flores – brancas, amarelas, de tantas formas e feitios. Há sempre um amigo homenageado e à beira da morte.
Incongruências nos factos, abuso nas interpretações, algumas mentiras a juntar ao que não é interessante, ou já foi escrito, e todos satisfeitos a aplaudir, a comprar, a entrevistar, a ver passar oblaguer, enfim, a festa do embuste, ou do poder económico, ou do poder político, ou das duas coisas, mais o marketing, que sei eu...
O Fernando não merecia isto.
Um mês depois do acidente decido voltar à carga. Enquanto aperto o capacete ainda franzo um sobrolho – quem diz que todos os traumas pedem para ser superados? Na faixa do bus na avenida os táxis ultrapassam-nos a centímetros da minha perna que ainda chia desde o embate. Ao menos tenho alcatrão, sempre parece mais suave que os outros pedragulhos. Vou com o mesmo companheiro de infortúnio e desta vez vamos muito calados. Logo na primeira rua passamos um vermelho e podia jurar que vi chapas retorcidas, vidros estilhaçados, bocados de borracha a ferver no alcatrão. Mas nada acontece. É apenas uma noite tranquila de primavera, dois ou três carros a cirandar, nada a assinalar. No fim, enquanto tiro o capacete e parodio a viagem, apercebo-me das mãos a suar.
... trancas à porta. Ou uma fechadura nova, mais especificamente.
Uma pessoa acompanha este caso e tem dificuldade em acreditar que possa ser possível. Depois do computador, agenda e telemóvel do 'superespião' terem sido revistados e encontradas provas inequívocas da sua má conduta; depois de terem sido provadas as reuniões e trocas de mensagens e informação com o ministro; depois de sabermos qual foi a moeda de troca para a obtenção do cargo na Ongoing; depois de tudo e tudo: o ministro continua em funções e afirma que a sua posição vai sair reforçada deste episódio; o espião-meia-tigela brinca ao Kung Fu Panda e diz que é uma vítima. Mas alguém é capaz de pôr esta gente na ordem? Quanto mais tempo temos de aturar esta gentalha corrupta e mal formada à solta? E as pessoas que foram vítimas do 007 que tiveram direito a ficha como nos bons velhos tempos da PIDE com dados pessoais que chegavam ao requinte de conterem informação sexuais? Quem é que nos protege desta gente? Mas está tudo doido?
Quem vive na devassa, morre pela devassa.
Um dia descobrimos de chofre a nossa fragilidade perante as coisas absurdas que podem acontecer. Acho que era o Nietzsche que afirmava 'a loucura é algo raro em indivíduos – mas em grupos, partidos, povos e épocas é a norma'. Quando escreveu isto desconhecia por certo a minha habilidade de encontrar gente louca num palheiro.
O domingo não é quando um homem quiser.
Volume no máximo.
Já se respira melhor nesta cidade. Não é só a primavera, é uma questão de decisões também – a única forma de avançar é cortar pela raiz certos males.
Pensamos que temos os pés bem assentes no chão, que é difícil tirarem-nos o tapete, que não nos admiramos por pouco. E no entanto, só com palavras, sílabas, vogais e consoantes, frases compostas, prosa e pontos finais, resta-me em certas horas o espanto profundo pelas intenções do mundo.
Fiction spilling into the real world is the theme, and apart from the objects in the museum, including household items and personal effects among others, it is also Kemal’s obsession that has become palpable in the man who created him. Pamuk’s own urge to collect objects related to the life of his novel is the driving force for the resulting space dedicated to a time that has long since passed and characters only readers know intimately.
Regresso à outra cidade. 24h para despachar o trabalho todo, regar as plantas, pensar no gato que não existe, fechar a torneira do gás, dar duas voltas à fechadura. Até já.
A secretária e a máquina de escrever Royal usadas por Fernando Pessoa durante quatro anos vão a leilão no início da próxima semana. Numa altura em que já há propostas para a compra desta peças, a TSF foi vê-las a uma galeria de arte de Lisboa.
Abrir as janelas todas e deixar o ar correr veloz pela casa. Papéis a rodopiar no ar, portas a bater, pétalas que se soltam das plantas. É tempo de voltar a respirar.
Rei – Acredito, sim, que penses o que dizes agora; mas aquilo que decidimos, não raro violamos. O propósito não passa de servo da memória, de nascer violento mas fraca validade. E que agora, como fruta verde, à árvore se agarra, mas, quando amadurecida, despenca sem chacoalho. Imprescindível é que não nos esqueçamos de nos pagar a nós mesmos o que a nós é devido. Aquilo que a nós mesmos em paixão propomos, a paixão cessando, o propósito está perdido.
Hamlet, Shakespeare
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
Agora e na hora da nossa morte - Susana Moreira Marques
Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES