Quinta-feira, 16 de Agosto de 2012
o telefonema

 

 


O dia começou e não havia palavras. O aparelho mudo, um fanico nocturno, restou-me o telefone morto na mão e ainda pensei se era uma benção ou uma grande perda. Era preciso fazer uma chamada e comecei a pensar onde raio uma pessoa faz isso na era da internet e dos aparelhos de nova geração onde as cabines de rua desapareceram. Tentei num sítio e depois noutro e não tive sorte. Depois lembrei-me daquele café que recordava vagamente ter um telefone e fiz uma aposta comigo, se afinal tinha tão boa memória ou era um delírio. Só o café dava um romance inteiro, cheio de maquinaria e balcões dos anos 50, as histórias que já inventei com este espaço por cenário. Lá estava ele, o telefone preto, onde é preciso espetar o dedo indicador no aro e girar. Dois, um, nove, oito... e a cada vez, o aro a voltar ao ponto inicial. À primeira tentativa ninguém atendeu. E comecei a rir estupidamente, parecia que tinha voltado aos anos da minha infância, ir ao café ligar para os amigos, os desencontros, as chamadas perdidas. Para ligar novamente foi preciso pressionar nos quadradinhos pretos onde se pousa o auscutador para desligar a chamada e iniciar outra. Só faltou a voz da operadora. Outra vez o dedo no aro, dois, um, nove, oito... e à segunda tentativa ouço uma voz do outro lado da linha. Cumprimento jovialmente e do outro lado jorram as perguntas, se já me ligaram, se recebi alguma chamada, se ele ligou. Que não, que estou sem pio, não recebo chamadas, problemas técnicos. E depois sei, neste café de outras eras, com o ascutador no ouvido esquerdo, o fio do telefone a abanar no ar, que morreste às três da manhã. Continuei a falar normalmente, ri-me até, parece impossível mas é verdade, não domino a arte de passar da felicidade à tragédia em segundos. Preciso de tempo, é preciso engenho para tal, e digo-te, estava tudo a correr tão bem, demasiado bem agora pensando nisso, tinha a alegria de uma manhã de Verão estampada na cara de tal forma que não foi fácil compreender cada palavra e sílaba quando me falaram de ti, tu que encerras com a tua morte uma fase na minha vida. Foi só depois de beber um café, pagar a chamada e sair para a rua na canícula deste dia tão bonito que o aro do mundo me acertou em cheio.



publicado por afonso ferreira às 16:07 | link do post

De teresa a 17 de Agosto de 2012 às 19:52
o texto é lindo. espero que seja pura ficção, mas sinto que não.

um abraço.


De afonso ferreira a 19 de Agosto de 2012 às 05:31
infelizmente não é ficção. abraço para ti também, Teresa.


Comentar:
De
( )Anónimo- este blog não permite a publicação de comentários anónimos.
(moderado)
Ainda não tem um Blog no SAPO? Crie já um. É grátis.

Comentário

Máximo de 4300 caracteres



Copiar caracteres

 



O dono deste Blog optou por gravar os IPs de quem comenta os seus posts.