É da marca Pepsodent, a caixa de cartão é verde e tem uma ilustração com meio limão, aloé vera e outra planta que parece hortelã. À primeira escovadela fiquei repentinamente a olhar para a minha imagem no espelho, a escova submersa na gruta da boca, o cabo na mão suspensa pela surpresa. Ergui uma sobrancelha e continuei a escovar. Depois fui ler as letras miudinhas como nos contractos e fiquei na mesma. Não que seja assim tão burro que não saiba ler, mas a minha inteligência também não chega para decifrar uma língua estrangeira que aposto um membro da família como não é europeia. As únicas palavras que decifro é Pepsodent e herbal, o resto veio da Torre de Babel. Eu nunca tinha olhado com atenção para uma pasta dentífrica na minha vida. Nunca tinha franzido os olhos, as pestanas a encostarem umas nas outras, para conseguir ler as letras corpo dois dos ingredientes. Mas, na verdade, quando faço dos olhos um risco, não estou a ver a pasta, estou a olhar para a minha vida e a pensar no que é que aconteceu para andar a comprar pastas de dentes à uma da manhã. A essa hora devia estar a beber copos, a fazer sexo, a ler ou a dormir. Qualquer coisa, tudo menos compras de primeira necessidade. Esta pasta é a prova e o sabor da minha falência enquanto adulto.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
Agora e na hora da nossa morte - Susana Moreira Marques
Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES