Há muitos acontecimentos que surgem na minha memória com extrema nitidez mas não sei dizer o dia exacto em que ocorreram. Mas há um dia, 26 de Outubro de 1998, que sei precisamente onde estava. Seguia num táxi e passava pelas Amoreiras. Um glorioso dia de sol, o outono avançava timidamente, e, no rádio, a notícia da morte de José Cardoso Pires. Recordo a sua partida como quem recorda a de um parente. O autor de um dos livros da minha vida – Alexandra Alpha – desaparecia e, com ele, a oportunidade de lhe fazer uma pergunta. A primeira vez que li o livro tinha treze anos, voltei às suas páginas muitas e muitas vezes nas duas décadas seguintes. Foi decisivo para compreender a geração dos meus pais e, mais do que o início da percepção da situação política e social do país onde nasci, percebi as angústias, sonhos e pensamentos daquela geração. Deixou outro livro, o derradeiro, De Profundis, Valsa Lenta, que haveria de comover-me até às lágrimas pelo facto de uma pessoa próxima ter passado pelo mesmo. Quando recuperou a consciência, depois de um AVC fulminante, foi a primeira coisa que lhe levei. Cheguei ao quarto do hospital com o livro na mão e vi-o, pela primeira vez, a chorar compulsivamente. Fiquei com o livro a abanar no ar sem saber se era um mau ou bom sinal – uns dias antes nem reconhecia o seu próprio braço esquerdo (de quem é este braço, este que aqui está na minha cama, perguntava com ar aflito a apontar com a cabeça na direcção do próprio braço). Nesse cenário devastador, chorar, ter consciência da situação, é uma bênção, pensei, tentando apaziguar os meus fantasmas. E ainda há outro livro, Lisboa, Livro de Bordo, que amo para além de uma explicação racional. Um passeio muito mais longo que o simples percurso de ruas e lugares, uma aventura pela memória onde foi feliz. Serve este post para divulgar que a 16 de Janeiro, Clara Ferreira Alves, António Lobo Antunes e Júlio Pomar, entre outros, vão estar no São Luiz a recordar o autor; que a 23 de Janeiro celebra-se o 50º aniversário da publicação O Render dos Heróis e a 30 de Janeiro o 30º aniversário da publicação de Corpo Delito na Sala de Espelhos. Vai ser bom, mas não é a mesma coisa. Gostava era de perguntar pessoalmente qual era a verdadeira intenção da Alexandra ao levar o dotorzinho à Vila Berta, o que pensava enquanto tinha relações debaixo da nespereira e desvendava a traição. Esta questão atormenta-me há vinte anos e eu não tive oportunidade de lhe perguntar.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
Agora e na hora da nossa morte - Susana Moreira Marques
Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES