Na praia não há um espaço livre mas isso não me incomoda. O mar tranquilo, um avião a riscar o céu. Depois piruetas, cambalhotas aéreas, parece perigosamente próximo da linha de água. Os barcos a passar. Uma pirueta, duas, três. Agora pirueta a girar sobre si próprio também. Foi assim que o outro morreu. Uma pirueta na avioneta para impressionar a mais-que-tudo. Tão bom rapaz, não fumava nem bebia. Os barcos a passarem. Ela assistiu a tudo, a cambalhota falhada, o avião a cair, o rapaz inteligente lá dentro, a queda fatal. Não fumava, não bebia. O velho forte é bonito e é feio, simultaneamente. Garantem-me que em Novembro vai ser palco de conspirações. Vem aquele muito importante, e os outros também. Os barcos a passarem. Eu a contar tatuagens. Parece que estou outra vez na Checoslováquia há doze anos. Tatuagens e filhos. Tantas crianças a caminho e tantas pessoas desorientadas. Na praia, um dia de sonho. Interrogo-me por que serão os melhores amigos tão parecidos? Não me pareço com ninguém. O helicóptero no céu com o contentor da água a oscilar. Os incêndios ao longe. O país a arder e esta água tão fria. Os barcos a passarem. Falas-me desta arquitectura desaparecida, estas construções, estes fortes que arquitectámos no mundo inteiro, que resistem à força do mar, que não cedem. Eu nunca tinha pensado nessa força, conversar é isto também, emprestarem-nos outros olhos, obrigarem-nos a olhar estupefactos para a força de algumas ideias. O mundo a mudar tão rápido. Neste dia de sonho, cheio de bons rapazes, os barcos continuam a passar.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
Agora e na hora da nossa morte - Susana Moreira Marques
Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES