Não sei como surgiu. Deitei-me e adormeci tão profundamente que o mundo ficou suspenso. Quando finalmente voltei a dar à manivela encalhei num domingo cristalizado, tanto calor que os pombos colam uns aos outros nos beirais. O céu sem manchas, as copas das árvores mudas, esta vista-postal. Tal como o escritor que recebeu o telefonema do amigo morto e rumou à capital num dia infernal de calor, também o meu telefone range e em vez de seguir para os Prazeres dou ordens aos passos para o meu antigo bairro. Dois prédios é a distância entre o destino de hoje e a minha antiga morada. Eu nunca gostei destes dias empalhados, do mundo quedo. Mas hoje estou em paz, veio de surra durante a noite, estou suspenso num parênteses, estou aqui e sinto-me bem. Na casa os tacos do chão dilatam, estão inchados, gostam mais do frio, transpiram e resfolegam. Dezenas de telas expostas, penduradas e adivinhadas nas paredes e nos armários. Tenho um segundo de espanto, há um assombro neste trabalho. Detenho-me nos pormenores, secretamente elejo as minhas preferidas. Espanta-me não sucumbir num domingo de plástico. Tenho as emoções de férias, certamente.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
Agora e na hora da nossa morte - Susana Moreira Marques
Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES