Quarta-feira, 4 de Agosto de 2010

 

A primeira noite foi memorável. Um casaco que foi oferecido e pousado de forma delicada nas costas porque estava frio. Uma longa caminhada na cidade deserta, uma conversa interminável pelos acasos todos, um nascer do sol no terraço, o rio a espreguiçar. Depois as noites sucederam-se, doces, a partilhar comida e conversa, as vontades entrelaçadas. Já dei voltas à memória, para trás e para a frente, e não recordo quando é que começou tudo a azedar. Talvez pequenas coisas – palavras, gestos, obsessões diferentes – perdi a memória de tal. Só recordo o fim. Um partir de loiça, a minha impaciência, a tua prepotência, a nossa luta contínua – no fim ninguém ganhou. Recordo com nitidez um dia no sul. Areia e mar. O carro na estrada. A chuvada no regresso. Depois passámos a fase das traições, que teria sido dolorosa não tivesse eu descoberto entretanto novas distracções amorosas. Mas ainda não era altura para ser totalmente indiferente aos teus ataques. Depois voltaste atrás mas era tarde, demasiado tarde. Depois fizemos as malas e cada um partiu na sua direcção. Haveríamos de nos encontrar muitas vezes. Durante algum tempo fingíamos não ver o outro. Originamos situações embaraçosas, horas no mesmo espaço a ignorarmo-nos. Era muito cansativo. Um dia vieste ter comigo na rua com um sorriso. Não caí na armadilha. Outros dias vieram e tu com o mesmo sorriso. Numa véspera de Natal condescendi e sorri de volta. Ficámos horas a falar na rua gelada, mãos nos bolsos, a bater com os pés no chão para aquecer. Levei algum tempo a perceber que tinhas mudado. Depois veio o amenizar da relação. Conheci uma nova pessoa na tua vida, não podias ter escolhido melhor, houve conversas, encontros, momentos. Depois fiquei preocupado por saber que estavas só novamente. Ultimamente os encontros não têm acontecido mas vou sabendo notícias soltas e pareceu-me que estavas bem. Por isso, hoje, quando soube que estiveste por uma unha negra para morrer, faltou-me o ar e precisei de caminhar muito antes de ligar. Quando finalmente ganhei coragem estava genuinamente apreensivo e quando agradeceste a minha preocupação senti a sinceridade na tua voz. Nos silêncios que fizemos interroguei-me onde é que estaríamos agora nesta história tão comprida. Do outro lado uma fragilidade que nunca tinha sentido, uma mágoa, um medo do amanhã. Antes de desligar não consegui poupar as palavras – Tu não me morras, ouviste? Se morres nunca mais te falo.



publicado por afonso ferreira às 03:53 | link do post | comentar

5 comentários:
De Bípede Falante a 4 de Agosto de 2010 às 15:42
Você escreve bastante bem. Vai fazer um ótimo livro!


De Anónimo a 5 de Agosto de 2010 às 16:03
As pessoas que amámos ficam-nos coladas à pele. Muito bonito o texto.
~CC~


De AclaQue a 5 de Agosto de 2010 às 19:32
Já comentei o texto noutro local...mas tenho que comentar o comentário "As pessoas que amámos ficam-nos coladas à pele": Nada mais verdadeiro!!! :-)


De Isa a 11 de Agosto de 2010 às 15:51
Ana Teresa Pereira. Um livro que me aconselharam.


De Verónica a 12 de Agosto de 2010 às 00:38
...só nos apercebemos do quanto alguém é importante para nós depois da perda, ou na antecâmara da mesma. Também disse..."não morras, por favor!"...fiquei muito, muito triste contigo,...disse-lho ao ouvido, não sei se fui ouvida!!! Pensei não mais perdoar-lhe o ter-me abandonado. A dor era visceral, corroía-me as entranhas, o ar feria-me a laringe quase me sufocando, as recordações invadiram-me a mente num rodopio confuso e no ouvido somente o som dilacerante dum "...e agora???"...ao contrário do que possas pensar,...falo contigo, é um monólogo por mim transformado em diálogo e assim passam os dias...
Hoje falei para ti, homem sem cidade, homem sem terra, residente na terra que nos transforma em pó.


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