Quarta-feira, 18 de Agosto de 2010

 

Todo o paraíso justifica o seu inferno. Por baixo do céu sem nuvens e das águas cristalinas vive o inspector da judiciária com o cigarro pendurado a queimar o bigode à caça dos pássaros-correio na rota do país irmão. Entre os fundos de malas e o aeroporto vai colocando pássaros raros na gaiola. Neste inferno aquático há naufrágios e chamas no fundo do mar. De escafandro e bomba de oxigénio descem com regras precisas velhos sonhos do passado. O instrutor sonha com o mundo perfeito enquanto aproxima-se do fundo do paraíso – câmaras de gás, tortura psicológica e as cabras que estoirou com a G3 na outra ilha. Que holocausto? perguntavam os que não venceram a guerra e ele dava a resposta certa como cão de fila bem treinado. Por momentos a revolução não aconteceu, as colónias vivem na palma da sua mão. Eu não tenho dúvidas, não fossem as espingardas com cravos estaria atrás das grades a viver o sonho deste homem. No inferno construíram o ghetto, o bairro de lata enferrujado que julguei abandonado. Das chapas retorcidas nem um som. Mas timidamente crianças saem à rua a acenar, há roupa estendida ao vento à espera do sol, vejo fumo numa chaminé. Um bairro com ruas e chapas de zinco cravado no meu próprio inferno privado. No inferno pode-se contar com cortes de luz e falta de água potável. Não existem hospitais nem universidades. Há ameaças várias e meninas abandonadas que vão parir às outras ilhas. No paraíso com pés de chumbo um bom passaporte para voar é seduzir uma mulher ocidental incauta. Ao jantar o homem importante é o centro da mesa. Ouvimos com esforço, há festa no palco. O homem importante fala muito e conta histórias diversas. Faz pausas no discurso, como um apresentador de espectáculo, para arrebitar a curiosidade e criar suspense. Conta a ameaça de morte que recebeu abrindo a camisa e desafiando a cortarem quatro cabeças em vez de uma. Fala das tempestades de areia que obrigam a isolar tudo até à última frincha e da exportação de tornados e emigrantes. O homem importante enfrenta ameaças de morte mas não prescinde da pulseira tucson em prol do equilíbrio pessoal. 


tags:

publicado por afonso ferreira às 13:19 | link do post | comentar

2 comentários:
De nuno granja a 31 de Agosto de 2010 às 01:18
Soberbo.

Obrigado pela partilha.


De afonso ferreira a 31 de Agosto de 2010 às 01:31
Obrigado, Nuno. abraço.


Comentar post

mais sobre mim
Dezembro 2012
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1

2
3
4
5
6
7
8

9
13
14
15

16
17
18
19
20
21
22

23
24
25
26
27
28
29

30
31


posts recentes

the end

Sleepless people

provérbio transmontano

cry me a river

Falta de rigor

obrigado

prémios literários

meia-noite

battle

status

Día domingo

imaginação

virtudes públicas, vícios...

fios

Estudos de um processo

arquivos

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Agosto 2012

Julho 2012

Junho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Março 2012

Fevereiro 2012

Janeiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Agosto 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Maio 2010

Abril 2010

Março 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

tags

a minha língua é a pátria portuguesa

cartas

casamento gay

coisas extraordinárias do gabinete

conversas de caserna

correspondência epistolar

corrupção

dias felizes

domingo

domingos

estudos

ghost writer

gira-discos

grandes crimes sem consequência

literatura

mercados

mundo virtual

outras cidades

paixonite

pequenas ficções sem consequência

perdido no arquivo

playlist

relvasgate

sonhos

suicídio público

taxistas

telenovela

um homem na megalópole

vendeta

viagens

todas as tags

links
subscrever feeds