Todo o paraíso justifica o seu inferno. Por baixo do céu sem nuvens e das águas cristalinas vive o inspector da judiciária com o cigarro pendurado a queimar o bigode à caça dos pássaros-correio na rota do país irmão. Entre os fundos de malas e o aeroporto vai colocando pássaros raros na gaiola. Neste inferno aquático há naufrágios e chamas no fundo do mar. De escafandro e bomba de oxigénio descem com regras precisas velhos sonhos do passado. O instrutor sonha com o mundo perfeito enquanto aproxima-se do fundo do paraíso – câmaras de gás, tortura psicológica e as cabras que estoirou com a G3 na outra ilha. Que holocausto? perguntavam os que não venceram a guerra e ele dava a resposta certa como cão de fila bem treinado. Por momentos a revolução não aconteceu, as colónias vivem na palma da sua mão. Eu não tenho dúvidas, não fossem as espingardas com cravos estaria atrás das grades a viver o sonho deste homem. No inferno construíram o ghetto, o bairro de lata enferrujado que julguei abandonado. Das chapas retorcidas nem um som. Mas timidamente crianças saem à rua a acenar, há roupa estendida ao vento à espera do sol, vejo fumo numa chaminé. Um bairro com ruas e chapas de zinco cravado no meu próprio inferno privado. No inferno pode-se contar com cortes de luz e falta de água potável. Não existem hospitais nem universidades. Há ameaças várias e meninas abandonadas que vão parir às outras ilhas. No paraíso com pés de chumbo um bom passaporte para voar é seduzir uma mulher ocidental incauta. Ao jantar o homem importante é o centro da mesa. Ouvimos com esforço, há festa no palco. O homem importante fala muito e conta histórias diversas. Faz pausas no discurso, como um apresentador de espectáculo, para arrebitar a curiosidade e criar suspense. Conta a ameaça de morte que recebeu abrindo a camisa e desafiando a cortarem quatro cabeças em vez de uma. Fala das tempestades de areia que obrigam a isolar tudo até à última frincha e da exportação de tornados e emigrantes. O homem importante enfrenta ameaças de morte mas não prescinde da pulseira tucson em prol do equilíbrio pessoal.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
Agora e na hora da nossa morte - Susana Moreira Marques
Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES