Uma vida a assistir à burocracia da profissão. Os processos, os clientes, a morosidade da justiça, a rapidez da injustiça. Uma vida inteira a assistir a várias vidas. Quando foi a minha vez de avançar tinha à minha espera várias observações – a rapidez no discurso, a teimosia, os olhos abertos – enfim, devias seguir direito, foi o veredicto. Pois, uma outra vida aqui à tua espera, não te faltará ocupação, tanta coisa por fazer. Eu disse que não era para mim, dei meia volta, segui outro rumo, os processos a abarrotar nas prateleiras e eu a bater a porta. Não imaginava morte em vida mais absurda do que enferrujar no meio da burocracia, o que desejava para mim era o oposto do que ofereciam. Um dia dei por mim no tribunal à porta de um julgamento. Mais precisamente o meu. O juiz, as testemunhas, a outra parte. E eu à espera do meu advogado que não aparecia. A porcaria da IC19 e tal. Eu à porta, os segundos a caírem, a urgência de tomar decisões. Eu à porta a dizer que se lixe. Entrei na sala, a porta fechou, aquilo começou e quando foi preciso defendi-me sozinho, falei com o juiz, puxei pela memória, concentrei-me no ali e agora. Saí-me bem, ganhei o julgamento, humilhei o outro advogado e ouvi do juiz uma frase que me ficou para a vida. Nunca mais voltei a estar num julgamento mas ultimamente lembro-me muito dessa manhã. Posso não ter seguido essa vida mas a metodologia corre-me no sangue. Principalmente a paciência. É precisa muita para juntar prova a prova, arquivar os factos e no fim esperar pacientemente pelo julgamento. As sentenças justificam os caminhos que tomamos.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
Agora e na hora da nossa morte - Susana Moreira Marques
Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES