Enviou-me uma mensagem em tom ligeiro a perguntar se andava pela cidade. Aceitou prontamente o meu convite para um copo ao fim do dia. Na esplanada pedimos uns whiskys, a pele a respirar finalmente com a brisa fresca vinda do rio. O meu amigo é pessoa de feitio apaziguado, mais de ouvir do que cair na tentação de preencher o ar com a sua pessoa. Quer saber como estou, quer ouvir-me falar, mas não me sinto para grandes conversas, ultimamente não tenho histórias muito alegres para contar e suspeito que o meu amigo não contactou-me por acaso. Mas, subitamente, dou por mim a contar a história das finanças e do fiscal que andava a ligar-me há umas semanas. Uma história verdadeiramente recambolesca que remota quase há uma década. Precisei de algum tempo para perceber a extensão da investigação e de que forma tinha chegado a mim, visto não ser eu o alvo nem em todo este tempo ter tido qualquer espécie de relação com o suspeito. A verdade é que o inspector precisava de ajuda. Estava num beco sem saída. Como num truque de magia senti-me a interpretar uma personagem dos romances do José Cardoso Pires. O inspector lagarto, já o via do outro lado do telefone a coçar a barba, a cinza a cair em cima dos papéis do dossier. Agora a melhor parte. O inspector não sabia, e ainda eu estou para descobrir que linhas misteriosas colocaram este homem a falar comigo, mas ligou talvez à única pessoa que realmente o poderia ajudar. Um pequeno documento antigo sem importância nenhuma com o meu nome e a partir daí começou a saga até encontrar-me. Todas as pessoas têm algo único e no meu caso é a memória. O que o inspector procurava em desespero e não sabia era uma memória que conseguisse juntar factos, histórias e caras.
O meu amigo está triste, não sei se já o disse. Trabalhou muito durante demasiado tempo e um dia percebeu consternado que era altura de mudar de direcção. Acumulou a dose suficiente de azares, cansaço e falta de reconhecimento para ter todos os elementos necessários para uma mudança verdadeiramente eficaz e desejada. Estava nesse impasse, a planear e a decidir o novo rumo, quando as coisas precipitaram-se no caminho oposto. Ao querer fugir dos compromissos acabou a comprometer-se com quem não devia, em vez de salvar-se decidiu resgatar quem não tinha salvação e quando devia colocar em prática a experiência adquirida cometeu erros com consequências catastróficas. Pior de tudo, decidiu que era no amor que talvez estivesse algumas respostas quando era certo ser a pior aposta. Adoeceu gravemente e passou umas férias no inferno. A recuperação foi feita lentamente, um dia de cada vez, noite após noite, e lentamente foi subindo a corda. Contou nessa altura com o apoio de pessoas em quem depositou confiança. Mas quando estava quase, quase a chegar ao cimo, os mesmos que o tinham puxado largaram a corda sem aviso. A segunda queda não foi bonita. Deixou mazelas, ossos partidos, escoriações. Desta vez parece não haver corda que o salve, a memória da queda não lhe permite continuar.
(cont.)
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
Agora e na hora da nossa morte - Susana Moreira Marques
Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES