Sexta-feira, 27 de Agosto de 2010

 

Se há uma característica que grassa na minha família é proclamarmos aos quatro ventos que vamos morrer e nunca morrermos. Ainda mal andava e já sabia que um dia iríamos todos finar. Ontem ligaste a dizer que teria de viajar, a matriarca mandou recado a dar a novidade que ia morrer e que tinha os ouros à minha espera. Eu ri-me e disse que os tesouros podiam esperar. Há trinta anos que ouço isto. Quando não gostavam de uma roupa em particular que envergasse era certo que me pediam para ao menos não usar isso no funeral. O funeral era aquela coisa que nunca acontecia mas que referíamos constantemente. Isso? Isso já não é para mim, que eu morro não tarda. Se é preferível ser cremado ou enterrado é uma dúvida recorrente nas conversas e mudamos de opinião consoante o ano. Agora, a maioria quer ser cremada. Mas pode ser que para o ano que vem estejamos a discutir qual é o cemitério mais bonito. O pedido vê lá se não esqueces isto quando eu morrer também é frequente e serve para tudo. Vê lá se não esqueces a chave que eu depois morro e já não posso abrir a porta. E depois continuamos todos vivos só para chatear. Por isso não estou a compreender o motivo para estar neste hospital a ver-te morrer aos bocadinhos. Como se não soubesses que isto é uma grande fita, uma maneira de viver. 



publicado por afonso ferreira às 18:22 | link do post | comentar

5 comentários:
De narmy. a 27 de Agosto de 2010 às 19:19
a minha avó sempre que faz anos diz que é a última vez, sempre que é natal diz que é o último que vê, a última páscoa também, e já o ouço há anos e anos e anos.
espero que essa pessoa que estejas a ver no hospital fique melhor.


De afonso ferreira a 31 de Agosto de 2010 às 01:44
essa avó é da família da minha de certeza. Obrigado, abraço.


De Sandra a 27 de Agosto de 2010 às 20:50
Chega sempre o dia em que é verdade... imagino que falar disso constantemente não o torne mais suportável, é possível até que o efeito seja o contrário...


De Sandra a 27 de Agosto de 2010 às 20:52
SB


De Bípede Falante a 28 de Agosto de 2010 às 03:40
Muito bom! Muito literário. Adorei o final. Bj.


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