Se há uma característica que grassa na minha família é proclamarmos aos quatro ventos que vamos morrer e nunca morrermos. Ainda mal andava e já sabia que um dia iríamos todos finar. Ontem ligaste a dizer que teria de viajar, a matriarca mandou recado a dar a novidade que ia morrer e que tinha os ouros à minha espera. Eu ri-me e disse que os tesouros podiam esperar. Há trinta anos que ouço isto. Quando não gostavam de uma roupa em particular que envergasse era certo que me pediam para ao menos não usar isso no funeral. O funeral era aquela coisa que nunca acontecia mas que referíamos constantemente. Isso? Isso já não é para mim, que eu morro não tarda. Se é preferível ser cremado ou enterrado é uma dúvida recorrente nas conversas e mudamos de opinião consoante o ano. Agora, a maioria quer ser cremada. Mas pode ser que para o ano que vem estejamos a discutir qual é o cemitério mais bonito. O pedido vê lá se não esqueces isto quando eu morrer também é frequente e serve para tudo. Vê lá se não esqueces a chave que eu depois morro e já não posso abrir a porta. E depois continuamos todos vivos só para chatear. Por isso não estou a compreender o motivo para estar neste hospital a ver-te morrer aos bocadinhos. Como se não soubesses que isto é uma grande fita, uma maneira de viver.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
Agora e na hora da nossa morte - Susana Moreira Marques
Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES