O piano morava na cidade longínqua numa sala com vista para os outros prédios. Eu nunca o visitei na casa dos pátios onde arrancavam todas as ervas que cresciam como se existisse horror ao verde, uma estranha perturbação à ordem estabelecida. Em vez disso foi o piano que viajou, terras e terras, e aportou na cidade, um velho resistente, pesado e maciço. Foram necessários quatro homens para o carregarem pelos andares antigos forrados a carpete vermelha subindo degrau a degrau. Pegaram-lhe a uma só força, como quem carrega um elefante, e subiram até ao céu sem o pousar uma única vez. Agora pela janela da nova sala vê três igrejas alinhadas a adornar a colina. Vê árvores e antenas nos telhados, o eléctrico, o vaivém da nova cidade. Quando entro no prédio ouço-o a deslizar pelo estuque, a encher a caixa de ar das escadas, a sair pela clarabóia do telhado, a soar nas canalizações dos vizinhos.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
Agora e na hora da nossa morte - Susana Moreira Marques
Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES