Ao telefone a voz é errante, sobressaem as falhas, os tempos verbais trocados, acompanha-a um riso nervoso, uma tentativa gorada de ironia para dissimular a humilhação. Por momentos lamento esta conversa não ter decorrido olhos nos olhos. A voz que agora treme berrava muito há uns anos, dizia o que queria a quem queria sem calcular danos. Pensava que era o dono do mundo. Só dobrava os joelhos em direcção ao solo se do outro lado estivesse alguém com nome sonante. Um lambe botas ridículo como conheço tantos. Para caírem nas graças de alguns preferem passar por cima de muitos, para serem bem sucedidos na sua demanda fecham os olhos às evidências e à justiça, gostam de alvorar grandes virtudes mas no fundo não passam de uns cães rascas sem moralidade. Depois dos cumprimentos iniciais da praxe ainda tentou um tom de voz arrogante mas com duas frases apenas de resposta ficou a ganir. Esse tom era bom para ser usado antes. Antes de eu saber com dados na mão de todas as jogatanas reunidos com tanta paciência, antes da polícia rebuscar mundos e fundos, antes de saber das escutas, antes de tudo ter corrido mal.
Ontem, conversávamos nós à beira-mar, a água fria a bater-nos no corpo em pequenas ondas, dizias-me que grandes mudanças aproximam-se. Eu não disse nada, um pequeno aceno de cabeça, mas pensei no cão tinhoso e no seu destino. Ficas assim a saber o motivo do meu silêncio, a lama subiu à superfície.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
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Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES