Sábado, 11 de Setembro de 2010

 

É imperativo virar costas à cidade. No Caís das Colunas vejo um rapazinho maltrapilho com um cão tão minúsculo que quase o confundo com um rato. Um estranho roedor que segura nos molares com toda a sua força canina um baldinho ainda mais pequeno com moedas. Ignoramo-nos mutuamente e ficamos os três a olhar para os destroços no Tejo, o navio encalhado, as gaivotas em voos picados a rasar a linha de água. Quando era pequena sonhava que voava e via estranhas coisas guardadas no cimo da estante da sala-de-estar. Segredos da família escondidos junto ao tecto. Agora já não voo nem sinto espanto. Tédio. É isso que sinto, um grande, grandessíssimo tédio. Foi o que me apeteceu dizer no hospital. Sou doente, sofro de tédio há trinta anos, curem-me, por favor. Apanho uma pedra no chão e atiro à primeira gaivota que vejo. Depois outra pedra, outra e mais outra. Arranho os dedos no cascalho. Ponho o bando de gaivotas em alvoroço, grasnam, rodopiam nos ares. O rapaz imita-me, apanha pedras e repete-me os gestos. O cão ladra, ladra, ladra, ladra. Entre os dois não houve ave que escapasse às pedradas. Fizemos pontaria a tudo. Ainda nadasse peixe decente no rio e também levava. Só parámos quando já não havia pássaro à vista. Uma festa. Sorrimos e o cão abanou a cauda. Respiramos fundo e partimos. Afastamo-nos do cais e cruzamos a praça. Na esplanada deserta nas arcadas escolhemos a mesa central. A azáfama de outrora no café centenário desapareceu e no seu lugar nasceu uma desolação em ritmo fúnebre. Fazíamos um par bizarro sentados à mesa. O meu vestido prateado em contraste com as suas roupas andrajosas no corpo desenhado a tira-linhas. Esfomeado e com ar doente, tudo o que comia dividia com o cão que também era só patas. De vez em quando olhava para mim, numa curiosidade crescente, não só atirava pedras ao passario como o alimentava, devia surgir aos seus olhos como uma aparição. Vejo-o a ocultar comida às escondidas nos bolsos com um ar tenso. Dou-lhe todo o dinheiro que tenho e despeço-me.

 



publicado por afonso ferreira às 01:09 | link do post | comentar

1 comentário:
De Lígia Paz a 11 de Setembro de 2010 às 10:30
Gostei.

Se me permite - só não tenho a certeza do vestido prateado. Não sou ninguém para o dizer, apenas uma opinião; é que encravei nele até ao fecho.


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