Sábado à noite entro no táxi e peço para seguir para a estação do Cais do Sodré. O taxista pergunta se é para a estação de comboios e eu respondo que não. É para a outra, a dos barcos. Isso anima-o, quer saber se vou para Almada, e como respondo afirmativamente começa a desfiar o rol de parentes que residem na outra margem. Não tem menos de setenta anos e na cidade e nas ruas que sabe o nome de côr e que faz gosto em saber se conheço, tem uma tia, vários primos, uma sobrinha. Almada desenvolveu-se muito, conta-me ele. Prédios altíssimos, tudo novo e moderno, quem viu aquilo quando ele era gaiato e agora. Recorda-se bem das férias que passava junto ao mar na colónia. Ele e os primos, dois meses inteiros. Gostava muito de viver em Almada, sempre tinha a família perto e uma casa bonita, mas são tão caras. Ainda andou a ver mas não era para o seu bolso, contentou-se em viver sozinho numa casa antiga em Campolide. E Alcochete? Se conheço Alcochete, pergunta o taxista. Nasceu lá, veio morar para Lisboa com onze anos. Fartou-se de chorar, não queria vir, mas a vida do pai era toda tecida na capital. Não tinha querer, chorou, chorou, mas teve de fazer as malas. Se tivesse um dinheirinho também não se importava de ir para lá morrer.
O barco aproxima-se da outra margem e vejo uma caravela ancorada em terra e prédios e prédios a riscar o horizonte. No meio dos passageiros surge um homem a berrar. Portugal fez tanta obra e deu tudo. E nós aqui tão pobres sem nada. Portugal fez tanta obra.... – diz ele numa ladainha circular desesperada. Por telefone oferecem-me indicações preciosas para chegar ao destino. Há que apanhar o metro. Há que perceber onde é o estupor, comprar o bilhete para o dito cujo, perguntar a estranhos se vamos na direcção certa. O metro serpenteia pela cidade como uma cobra veloz num espanto mudo. As estações, em revolta com o asfalto, sucedem-se umas às outras – 25 de Abril, Gil Vicente, São João Baptista –, como tesouros do progresso.
Publicado no Delito de Opinião.
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