Quando mudei para a minha casa actual ia ao café todos os dias e não via nada de especial. Depois comecei a pensar que o homem do café era excessivamente simpático. Algum tempo depois pareceu-me que tinha um olhar sinistro. Durante uma certa altura não o vi mais e continuei a frequentar o café que, assim como assim, sempre tem umas empregadas atenciosas. Um dia, ao passar pela baixa, observei uma situação na qual fiquei na dúvida se o homem era traficante de droga ou de armas e nunca mais coloquei os pés no estabelecimento. Uma vez fiquei sem tabaco e voltei em desespero de abstinência. O homem estava a atender uma família portuguesa que na tentativa de proferir um elogio insultou-o do pior modo por ser estrangeiro. O homem limitou-se a sorrir e nada disse, num gesto de elegância como poucas vezes vi, eu fiquei com as tripas revoltadas e para demonstrar de que valores sou feito voltei a frequentar o café assiduamente todas as manhãs. Entretanto descobri que vai ser pai. E voltei a reparar no olhar esquisito dele. Passei a alternar as minhas idas ali com outro café aberto recentemente na mesma rua mas onde sou obrigado a ver um cartaz a anunciar domestic soup. Hoje de manhã, ao mexer a colher no café em pequeninos círculos indolentes, ponderei se já é lícito chamar relação a isto.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
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Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES