Quarta-feira, 13 de Janeiro de 2010

 

Eu sei porque é que gosto de ti. E também porque é que odeio. E o porquê de aqui estar. Eu sei. Tu és o reflexo dele, e és um reflexo tão apurado que estou contigo e confundo tudo, as palavras, penso que já sabes o que vou dizer, apetece-me iniciar a conversa no ponto onde ficámos, lá atrás, quando ainda eras carne e osso e não alguém noutro continente. E depois há a escolha do restaurante, reviravoltas, não pode ter sido acaso. Esta era a mesa onde nos sentávamos. Havia sol e sardinhas e estrangeiros a beber vinho verde. Agora é inverno e uma tempestade abateu-se na cidade há três semanas e o céu não pára de carpir. Há a forma como olhas para mim e eu não te vejo, és um reflexo. Andam os dois pelo mundo e eu sou aquele que ficou no porto. Os navios partem do Terreiro do Paço e quando já são apenas um alfinete no horizonte aconchego a gola do casaco, mato as mãos nos bolsos e inicio a marcha lenta para casa sem vós. Mas agora ainda não é tempo de despedida, por enquanto celebramos à mesa, ainda respiramos, não é hora de partidas, o rio está perto, arranha as pedras no caís, mas no Campo das Cebolas só o cheiro do lodo o denúncia. Partilhamos marisco e alheiras, cerveja e um quartilho de vinho, combinação apropriada num jantar de dois homens de campos opostos – um do norte, outro do sul. Ao nosso lado temos uma placa de barro com uns versos, profusamente decorada, azul-cobalto, azul céu e aquele verde raro em que mergulho e as palavras

 

O Fado a horas mortas / Em contraste ramboiada / Vibrante fora de portas / Com vinho e sardinha assada


Para compor o presépio, entra o acordeão, está atiçada a festa. A música a iluminar a sala de supetão, os homens animam-se, largam o jogo de futebol, rodeiam o homem. Fazem roda, animam-se como rapariguinhas. O teu reflexo na música. Já te adivinhava a sofrer lá ao longe. Envio-te cartas e não respondes, ando a carregar o medo às costas à conta do teu silêncio. A pensar o que não devo. E depois mandam-me do além reflexos teus com notícias, macabra correspondência que não precisa de selo. Afinal, partiste mais uma vez, onde andarás agora que levaste os livros todos. Levaste os livros todos e não respondes às cartas. Filho-da-puta. Mas de te saber bem, tudo esqueço, quem lê não pode estar morto, mal estarias se nada levasses, se não continuasses a partir. No alívio descubro onde reside o meu verdadeiro afecto, por te saber vivo mergulho pelo acordeão, pela roda, pela voz dos homens. Digo-te, se me ouvires onde estiveres, hoje é noite de bruxas à solta, sinto-o, atrás na nuca. 

 



publicado por afonso ferreira às 23:09 | link do post | comentar

2 comentários:
De Vera a 14 de Janeiro de 2010 às 10:54
Lindo. As palavras. As descrições. Os sentimentos. O vazio. Um beijo


De Miss Green a 16 de Janeiro de 2010 às 11:23
fiquei com saudades de ter saudade, de ver reflexos onde não há espelhos.


Comentar post

mais sobre mim
Dezembro 2012
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1

2
3
4
5
6
7
8

9
13
14
15

16
17
18
19
20
21
22

23
24
25
26
27
28
29

30
31


posts recentes

the end

Sleepless people

provérbio transmontano

cry me a river

Falta de rigor

obrigado

prémios literários

meia-noite

battle

status

Día domingo

imaginação

virtudes públicas, vícios...

fios

Estudos de um processo

arquivos

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Agosto 2012

Julho 2012

Junho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Março 2012

Fevereiro 2012

Janeiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Agosto 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Maio 2010

Abril 2010

Março 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

tags

a minha língua é a pátria portuguesa

cartas

casamento gay

coisas extraordinárias do gabinete

conversas de caserna

correspondência epistolar

corrupção

dias felizes

domingo

domingos

estudos

ghost writer

gira-discos

grandes crimes sem consequência

literatura

mercados

mundo virtual

outras cidades

paixonite

pequenas ficções sem consequência

perdido no arquivo

playlist

relvasgate

sonhos

suicídio público

taxistas

telenovela

um homem na megalópole

vendeta

viagens

todas as tags

links
subscrever feeds