Houve uma altura, há uns anos atrás, em que o meu carro era assaltado dia sim, dia não. A técnica mais frequente era com uma chave-de-fendas. Até fazia apostas, consoante de manhã a fechadura estava torta para a esquerda ou para a direita. O resultado tinha o condão de condicionar o dia. Cheguei a tomar decisões de acordo com o estrago na fechadura, como alguém que atira uma moeda ao ar. E protagonizei grandes momentos de futurologia, sempre era mais limpo que chafurdar nas tripas de um bicho à procura dos números do euromilhões. Tantas vezes os assaltos aconteceram que, um dia, cheguei ao carro e a fechadura estava finalmente no sítio correcto, ou seja, direita como era suposto. Imaculada, um trabalho impressionante. Conhece-se eu o larápio e tinha-lhe enviado um cabaz de natal.
Assim estou eu com o sono. De tão destrambelhado resta-me esperar pela noite em que a chave-de-fendas o coloque no sítio original.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
Agora e na hora da nossa morte - Susana Moreira Marques
Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES