Começou pela garrafa. Observou durante alguns minutos, passou o dedo pelo relevo das letras gravadas no rótulo, apreciou a cor, o pequeno depósito que o tempo denunciava. Não tinha a certeza, mas parecia-lhe a garrafa que tinha sobrado daquele jantar. Procurou o saca-rolhas. Abriu-a, cheirou o vinho, inspirou a mistura de aromas e o cheiro na rolha. Lentamente, verteu todo o conteúdo num fio pelo ralo. Sentiu o cheiro agora mais forte, enjoativo, a pia tingida de sangue. Depois partiu a garrafa com uma pancada seca contra a pia. Com o cabo do saca-rolhas esmagou os vidros maiores até só restar uma mão cheia de pequenos diamantes sem valor. Com as mãos em concha transportou o seu pequeno tesouro até ao lixo. Não deixava de o surpreender a volatilidade dos objectos, o pequeno milagre da metamorfose de uma coisa em nada. Ainda há pouco era uma garrafa, agora já não existia.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
Agora e na hora da nossa morte - Susana Moreira Marques
Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES