Avançamos por uma cidade entupida de chuva e acordos orçamentais. O pára-brisas à beira do colapso, cidade cinzenta e escura num meio-dia acabrunhado. O taxista está satisfeito com o serviço, o destino da corrida é perto da sua casa, um bom motivo para almoçar com a mulher. Aproveita para dizer que casou há quarenta anos na Basílica da Estrela. Um casamento de quatro décadas, coisa rara nos dias que correm, penso, e, para mais, vejo um homem ainda apaixonado. Fala pouco dele, diz apenas que é um homem abençoado, mas da mulher era só darem-lhe a tarde toda, assunto não lhe falta. A forma como ela toca piano sem nunca ter tido aulas, a paixão dela por antiguidades, os dois filhos que tiveram, a escola primária onde andou, as aulas de filosofia que dava. É um homem abençoado ao contrário do cunhado que já casou cinco vezes. Tantos casamentos e nada nas mãos. Aqui entre nós, que ninguém nos ouve neste maldito dilúvio, diz ele, enquanto o taxi luta com a enxurrada, lama e desespero nas estradas, parece-me que ele é um mau homem.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
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Caixa para pensar – Manuel Carmo
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