Manhã de céu negro, uma avenida numa trégua no dilúvio, um compasso de espera até voltar a cair e inundar todas as vontades. Na passadeira, pessoas encharcadas a aguardar o sinal para avançar. O trânsito, vindo do rio em direcção à grande praça, a ganhar velocidade, quarteirão a quarteirão. Um homem surge ao meu lado, ficamos com os ombros alinhados, nada de extraordinário numa passadeira tão antiga que já viu tantos homens à espera. Espera dois segundos, se tanto, que não contei pelo relógio, não é meu costume cronometrar homens à espera, e avança pela passadeira. Coxeia ligeiramente da perna esquerda, mas salvando esse pormenor, todo ele é resolução. Avança e atravessa as duas vias sem olhar uma única vez para o trânsito. Segue em passo decidido, a mancar suavemente, nem depressa nem devagar, vai no passo que o corpo pede. Ouvem-se buzinas, chiares de pneus, travagens a patinarem na estrada molhada. Enquanto o homem avança, paramos todos, pessoas dos dois lados do rio de riscas, trânsito, quatro rodas e eléctrico, e, por uns segundos, só vemos os passos do homem até que este alcança o passeio. Talvez tenha feito uma desfeita à morte, hoje não vencerás, terá dito o homem à caveira. Talvez não tenha nada a perder, ou será um homem de fé inabalável e sofra de desejos de parar o mundo. Seja a verdade algo que nunca seremos donos, o que é certo é o homem ter um salvo-conduto para a imortalidade deste momento.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
Agora e na hora da nossa morte - Susana Moreira Marques
Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES