Estava eu a sair de um evento há umas semanas e encontro casualmente um amigo. Ficámos à conversa na rua e subitamente passa na direcção contrária uma pessoa pela qual o meu coração bate há muito tempo. Fiquei petrificado quando vi o meu amigo a chamar a pessoa em causa e a cumprimentar efusivamente, não fazia ideia de que eram tão íntimos, nem sequer conhecidos. Apresentam-nos e dou por mim com a pessoa à minha frente de olhos dengosos a olhar este vosso criado. Tenho um ataque merdoso de insanidade e não digo uma para a caixa. Limito-me a meia dúzia de palavras de circunstância. Nenhuma tirada inteligente, nenhuma graça de jeito, nenhum comentário que fique para a história. Nada. O deserto. O meu cérebro sofreu uma lobotomia temporária e abandonou-me num momento crucial para a minha felicidade futura. Filho da mãe. Nunca mais esbarrei na pessoa, a vida é uma merda e depois morremos. Hoje chego a casa e venho a pensar neste evento funesto, tenho um discurso preparado ao pormenor silábico em que consigo misturar inteligência, humor e sedução em três curtas frases. Uma arma pronta a disparar em caso de assalto súbito, o problema é saber onde é que pára a pessoa. Enquanto penso nisto, que a cidade afinal é um território imenso, ligo distraído a televisão e eis que a vejo a falar em directo. De uma assentada não só a vejo como sei onde está naquele preciso momento, nunca mais digo mal do gabinete. Agora é só atravessar a cidade, enganar uma dezena de seguranças, entrar no estúdio de televisão e dizer as três frases. Desta vez não admito uma derrota.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
Agora e na hora da nossa morte - Susana Moreira Marques
Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES