Com a chegada da noite, o nevoeiro abraçou a cidade, avenidas, ruas, prédios, carros e habitantes envoltos em vapor, o rio a desaparecer pelo céu, a cidade a fugir pelos miradouros abaixo. O trânsito frenético, pára-arranca, pára-arranca, a minha urgência em chegar ao destino. Na esquina, em frente ao largo das cautelas, um homem desmaiado, um sono trágico, uma desistência no sítio errado. Muitos corpos à volta do corpo na calçada, ligam para ambulâncias, chamam a autoridade, coçam a cabeça, o que haveria de acontecer, pensam, no alívio de não terem sido eles a sofrer tal desgraça. No pára-arranca, fico imobilizado perto do homem e da pequena multidão, a desgraça para lá do vidro embaciado. O homem assemelha-se a uma criança, sou vítima de um fenómeno óptico, é o nevoeiro com certeza que desperta o meu imaginário, é alto o homem que dorme, nem novo nem velho, mas tão jovem não será. Mas com tantos corpos em pé, aquele que ali está deitado encolheu na fragilidade da situação, escorrega-lhe o peso da identidade pelos interstícios da calçada. Não há quem se ajoelhe para lhe dar dimensão, uma alma que lhe pegue na mão enquanto a ajuda não chega, ninguém oferece o colo para pousar a cabeça que assim no empedrado húmido nem parece humana. Quando o trânsito avança mais uma vez, o homem já não é mais do que um corpo que se carrega facilmente ao colo, leve como o nevoeiro. O carreiro de latas fumegantes continua a guerrear rua abaixo enquanto penso no destino, mais buzina, menos buzina.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
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