O dia seguinte foi feito de promessas, de pequenos nadas com valor cambial elevado. Ausculto a memória e lembro-me do teu sorriso franco, do título no jornal despropositado, a nossa conversa, catarse do tempo em que estivemos afastados, tu descalço a fazer café. Todo o tempo do mundo e ainda assim tanta urgência. O mar suficientemente perto para ouvirmos o seu rumor pelas janelas entreabertas. Hoje penso nas tuas palavras e reconheço-lhes razão: há um imbecil em cada esquina, o problema é se estás preparado para o reconhecer.
No dia seguinte eu não ouvi as tuas palavras. Meu amigo, até vou mais longe, diria que desde a nossa conversa o não-reconhecimento está entranhado em mim.
Há vários factores que o justificam. Um dos problemas é que não se aufere o grau de imbecilidade de uma pessoa pela aparência. Pior, nem pelo discurso ou gestos. Muitas das coisas proferidas até podem estar de acordo com os padrões contrários. Os gestos podem revelar aparentemente sentimentos nobres e preocupação pelos outros. É necessário tempo e persistência para afirmar convictamente, sem hesitações, esta pessoa é um imbecil chapado.
É preciso aturar conversas intermináveis sobre afinal coisa nenhuma, é necessário preparar armadilhas para perceber que a pessoa falha miseravelmente em todas, é imprescindível ler com atenção a espuma de fel dos dias, as palavras amargas, o desprezo pelo que é humano. Depois disso, quando não há nada a fazer – a constatação é esmagadora –, ainda somos torturados pelos polícias e os cães dos bons costumes mais as suas dissertações, que dão ganas de cortar os pulsos a qualquer pessoa sensata, e teremos de explicar, uma e outra e outra vez ainda, o que é ser imbecil.
Se a maré de estupidez humana não estancar, é preciso provar num estranho tribunal onde não existem leis escritas, que X é realmente um verdadeiro imbecil, por A mais B. Sendo que é possível o advogado de defesa não perceber o que é A, muito menos B, e, provavelmente, ser também um imbecil chapado como X. O tédio costuma apanhar-me nessas alturas. Não o tédio de bocejar, antes o da impotência. Não há acção possível para isto.
Os imbecis ganharão sempre. Só em número tramavam-nos logo, meu amigo. São exércitos e exércitos prestes a matar-nos com as suas baionetas de estupidez. A cada argumento lógico nosso há duas respostas impossíveis do outro lado. No limite, basta não assumirem o que fizeram ou disseram, neste falso mas tão real tribunal, isso é válido.
É preciso respirar e respirar pelo dia seguinte sob pena do tédio ser irreversível.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
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Caixa para pensar – Manuel Carmo
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