A caminho, na carruagem do metro onde me sento do teu lado esquerdo porque não ouves bem do ouvido direito, contas-me como chegaste a eles, o teu percurso na viagem que faço a teu convite. Levas uns anos de rondas por isso sabes o que dizes. Ligo a minha máquina de filmar às oito em ponto na estação de metro onde espero que chegues e que só haverei de desligar muitas horas mais tarde. A minha máquina de filmar nasceu comigo, é especial, nunca acaba a película e passado três décadas, com um arquivo imenso, começo pela primeira vez a questionar o que fazer com isto. O que fazer a isto tudo? Para que serve uma memória imensa, tantas histórias, umas boas, outras extraordinárias, outras tantas horríveis, as imagens, os diálogos, excertos e excertos de vida guardados. Enquanto não encontro uma resposta que tarda em chegar, continuo a filmar. Um dia chegou um email à caixa do blog, um convite para fazer uma ronda e eu aceitei. Haveria de passar algum tempo até se concretizar mas aqui estamos nesta noite fria a caminho. Quando saímos da estação ainda é preciso andar algum tempo até chegar à casa. Sigo no modo de gravação, falar o menos possível e ouvir com toda a atenção, técnica treinada e refinada ao longo do tempo e na qual já estou perto da perfeição. Tenho como objectivo um dia confundir-me com as paredes. Ao caminharmos preparas-me para o pior. Falas-me do homem que vive debaixo das chapas, do outro homem quase sem pernas que ocupou o terreno do Exército de Salvação, dos magotes de gente que aparece na estação de comboios. Que às vezes abraçam, contam histórias, mentem muito, mas isso tudo faz parte da relação estabelecida, que é sinuosa, um caminho de escarpas até conquistar a confiança deles.
(...)
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
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Caixa para pensar – Manuel Carmo
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CIDADES