Old fashion, diz ele. Levou uns piropos no sábado à noite na pista de dança e consequentemente um apertão no pescoço do mais-que-tudo da atrevida. Agora diz que vai cantar, influências do Chet Baker. Encontrou (encontraram-no) no Facebook pessoas com as quais já não trocava palavras há vinte anos. Os gajos de há duas décadas atrás quando o pai morreu, todos juntos por causa da morte do Eduardo que deixou uma filha bebé. Eu, que não conheci o Eduardo, mas que mortos é o que não falta na minha vida, percebo a sua consternação a propósito da voracidade do tempo a passar. É estranho ter memórias com vinte anos, diz na esplanada encavalitada nos telhados de Alfama num dia de tréguas. Lembra-se do candeeiro que teve de apresentar. O pai morto e ele a explicar que não tinha interruptor, tocava-se no objecto e fazia-se luz. A explicar mecanismos inovadores com o mecanismo interior feito em papas. Afinal de que morreu Chet Baker? E onde anda o candeeiro? Isto é bonito. Um museu a céu aberto é o que é. As casas, o empedrado das ruas, as buganvílias, a agência funerária, o palacete com a velhinha. Vamos tocar à porta?, diz e eu, por pouco, não espeto o dedo na campainha. Na pista de dança a amiga frenética mantinha-se abstémia. "Eu sou concentrada, é só juntar água" diz ela e ele achou piada. Há um mundo novo nas pistas de dança, já tinha ouvido falar, mas não sabia que existia, diz ele.
Somos infalíveis na nossa escolha de amantes, particularmente quando precisamos da pessoa errada. Existe um instinto, uma força magnética ou antena que busca o inadequado.
Hanif Kureishi
Serpenteio pelas ruas, o motor a roncar por cima dos trilhos dos eléctricos, o céu pardo, o cigarro na mão para pensar melhor. Dou duas voltas ao Panteão, passo no largo, hoje tão despido sem a feira da ladra. O mercado de Stª. Clara fechado. Um centro comercial a anunciar saldos, que juro que nunca antes vi. Falta aqui o bulício, falta gente, falta semana. Sempre me apeteceu vomitar aos domingos só por tédio. Por associação de ideias lembro-me que nunca vi um circo de pulgas e tenho pena. Imagino as pulgas no trapézio, aos saltos no trampolim, a saltar arcos em chamas. Sempre deve ser mais animado que o Panteão, solitário com a cúpula em obras, andaimes que parecem uma teia de aranha à cata de turistas voadores. Esta cidade adormecida. Decido estacionar no sítio mais inclinado que encontrei e seguir a pé. Passo na piscina, aquela em que prometi tantas e tantas vezes nadar contigo e nunca cumpri. Agora apetecia-me mergulhar, recuperar o tempo perdido, o último Verão. Se pudesse mergulhava de botas e sobretudo ignorando o termómetro emocional que está estragado. Olho para o rio e o casario e viro para o cotovelo à procura do prédio de azulejos castanhos. Nesta rua faltam uma dezena de números. Passa do número 20 para o 30 e tal sem explicação. Faltam seis prédios e quem lá vivia e ninguém deu por isso. Uma noite a rua estava completa, estavam os prédios e as pessoas a passar a ferro e a discutir, no dia seguinte eclipsaram-se. Ninguém pestanejou e a vida continuou. Indaguei dos prédios a um homem bonito que mora na rua do eclipse. Primeiro olhou para mim com desconfiança mas percebendo a falha ficou sem explicação, hipnotizado a olhar para a rua. Aposto que estão todos no circo de pulgas a desenvolver truques de ilusionismo. Subo os azulejos castanhos e troco juras de trabalho eterno, fujo ao anoitecer, procuro o carro, a rua está mais meio metro inclinada, mais um pouco o carro capotava e era uma trabalheira apanhar o animal umas colinas abaixo. A piscina continua a olhar para mim, maldito tanque de lágrimas.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
Agora e na hora da nossa morte - Susana Moreira Marques
Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES