Um post apagado diz mais do seu autor do que dez online.
Há dois tipos de pessoas: as que compreendem um problema ou uma posição com uma conversa e pela capacidade de reflexão e de vestir a pele alheia. E depois há as outras que só compreendem quando a própria pele queima.
Conferência "Da realidade à ficção: como averiguar do seu grau de loucura". Uma viagem pela blogosfera, crises de fé, prozac e blind dates. Num jardim brevemente.
Pergunta do taxista no final de uma longa dissertação sobre os destinos do país – o que fazem setecentos homens no parlamento, não bastava o presidente e doze ministros para um país tão pequeno?
O verdadeiro doente é o que não reconhece a doença.
Uma ida à Feira do Livro no último dia: Lisboa, Cidade - Abril, Depois de morrer aconteceram-me muitas coisas de Ricardo Adolfo (com uma excelente capa com uma outdoor sculpture de Erwin Wurm), O esplendor de Portugal de Lobo Antunes, O Chão dos Pardais de Dulce Maria Cardoso. Uma leitura diária: Horas extraordinárias de Maria do Rosário Pedreira.
I
A tropeçar pela calçada no conflito esquizofrénico habitual das manhãs os meus passos levam-me até ao largo. Imponente, entalado entre duas ruas íngremes em direcção ao céu, o chafariz ao centro, a inscrição no mármore, os jacarandás a dar sombra aos bancos. Eu não sei se foi de propósito mas floriram todos e o largo está tingido de cor, as folhas desmaiaram na calçada e nos carros. É belo e os meus passos estagnam vencidos pelo assombro. Num estranho casamento, raro de assistir, estão dezenas de pessoas debaixo dos jacarandás como se fossem um corpo uno. São muitos e cantam. Um olhar mais atento revela que são só homens e carregam cartazes e faixas, e o que parecia uma cantiga afinal são palavras de ordem ásperas. O que dá o tom de cantilena ao discurso inflamado são as garrafas de álcool que muitos carregam. Estão bêbados e são muitos e é muito cedo. Estão eles a vacilar agarrados aos cartazes debaixo dos jacarandás e uma brisa húmida agarra-se ao largo, aos polícias e aos meus passos. A assistir à estranha ópera está o edificio que alberga os destinos da economia. Os polícias atrás do portão, já lá estão também manifestantes. O ministério sereno, já viu muita coisa na vida, não hão-de ser uns jacaradás a florir nem uns desesperados com os copos a quebrar a sua vontade, isto há-de ruir até ao último tostão.
II
Devia com certeza fazer barulho, os relinches metálicos habituais, mas agora o que recordo é o carro a deslizar silencioso pela avenida, o rio ao fundo, azul-petróleo, o dia a morrer devagarinho. O cansaço a desprender do corpo e ela, alemã, dizem os documentos, a olhar para os jacarandás. A abrir a janela e com a cabeça pendente a tentar perceber o seu aroma. A dizer que nunca tinha visto, em Berlim não existem árvores coloridas que tingem as cidades de espanto. A contar da filha Lila que significa este lilás que entra no corpo adentro. Seguimos pela avenida a fiar histórias até chegar ao rio. Do dinheiro que é necessário para continuar a erguer obra(s), dos projectos que são necessários para a vida fazer sentido, do amor e da sexualidade, quando o cansaço instala-se e modifica as perspectivas do futuro e dos afectos. Há noites que convidam a relembrar o significado de respirar.
Esta noite descobri as farófias da Bica do Sapato. Isto não é uma entrada no purgatório, é uma viagem direitinha ao inferno pelo pecado da gula.
Há um risco calculado em decidir conhecer fisicamente alguém que só conhecíamos virtualmente. Esse encontro pode ser fatal, podemos tropeçar numa paixão, podemos acabar ao estalo, é imprevisível. O que é previsível até à medula é que haveremos de nos enganar vezes sem conta. As amizades – como o amor – partem sempre de pressupostos nossos, não da realidade concreta. Não existindo manuais para lidar com tais situações, que nos ensinem a ver para além das aparências e nos salvem de nós próprios, estamos à mercê do vento. Alguém dizia-me que o ideal era termos forma de conhecermos alguém sem a conhecer mesmo, como escutas telefónicas à pessoa até formarmos uma opinião estável. Como qualquer tentativa de vigia causa-me urticária proponho métodos alternativos. Leitura integral e intensiva das cartas amorosas trocadas ao longo da vida e de toda a biblioteca com especial atenção nos sublinhados. Bisbilhotice ao cabaz de compras no mercado. Avaliação atenta aos animais de estimação, se não existirem tomar em atenção esse factor também. Uma dúzia de vídeos onde a pessoa fale extensamente de vários assuntos, de política à problemática do acasalamento. E depois disso tudo e de muita ponderação, talvez, um dia podemos combinar um blind date.
Quando o inverno corrompia os ossos e chegava a casa e na aparelhagem tocava o So What a ronronar pelas paredes e nos vidros embaciados pela água a escaldar. A banheira cheia, mergulhava o corpo até à combustão, até o sangue correr na casa-risco-ao-meio gelada, o corredor sem fim à vista, portas à esquerda e à direita. Os quartos com portas interiores e eu a perder-me na casa e em mim próprio todos os dias. O quarto fechado que tinha um balcão de bar dos anos 50 e eu a pensar no que ia fazer à vida com uma bebida a queimar-me as entranhas. À noite sentava-me à mesa e traçava mapas e objectivos. Era a casa a tomar conta de mim, a desfilar memórias, os sobreviventes do horror, as plaquinhas em hebraico presas na diogonal nas ombreiras, as fotografias baças. Um dia nevou, flocos de neve que se transformavam em água ao bater no solo. Eu na varanda a olhar para o céu e a pensar que nunca tinha nevado na cidade, que a minha desorientação tinha contaminado o tempo, uma epidemia de gelo. A música todas as noites, enquanto mergulhava na banheira e contava os minutos sem respirar, enquanto a casa ficava nas minhas memórias e o Coltrane gravado eternamente na minha banda sonora.
"Hoje Lisboa é esta cidade de Abril com a ponte alta agrafando a outra Banda, com as luzes cintilando no céu, nas casas, na água, com as árvores e as ruas enfeitadas com faixas de festa, de organização e de luta"
Lisboa, Cidade - Abril, vários, Editorial Caminho
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Há os românticos e os outros, os coleccionadores compulsivos de desgraças amorosas.
* O alojamento de fotos enlouqueceu esta noite. Imaginem uma fotografia de uma onda a rebentar no pontão com o rio Tejo e o Cristo-Rei como pano de fundo.
O céu limpo, tantas promessas e conquistas no caminho e ainda assim o coração pesado como chumbo.
Escrever um livro, plantar uma árvore e alguém que crie uma página de admiradores.
Quando um homem resume a sua vida a trabalhar de manhã à noite sem descanso e as suas relações de amizade mais consistentes são virtuais, o nosso novo melhor amigo poderá ser o dono do supermercado na baixa aberto até à meia-noite. Tem todas as qualidades que se deseja numa amizade: é fiável, paga-se o que se quer levar, não fala português permitindo-nos uma comunicação isenta de ruído supérfluo - o que parecendo pouco é na realidade precioso atendendo às horas em que o visito - e acima de tudo está sempre disponível para nos aturar (por vezes está aberto até à 1 da manhã). Hoje, para além dos lacticínios e verduras que me mantêm no nível mínimo de sobrevivência, tinha à minha espera o último grito tecnológico: uma raquete electrificada para matar os insectos que teimam em namorar a fruta. Pedi-lhe para experimentar e renasci às primeiras raquetadas aos mosquitos na secção das pêras. Por gestos combinei alugar-lhe a raquete todas as noites por um preço módico. Hoje consegui encaixar o ginásio na minha agenda sobrecarregada e puxar o lustro à minha pessoa nos chats do facebook, afinal o ténis sempre foi um desporto elitista.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
Agora e na hora da nossa morte - Susana Moreira Marques
Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES