À minha indicação para seguirmos para a igreja percebeu que era para a maternidade. Quando perguntei pelo acidente, a causa de não haver eléctricos, respondeu que podia fumar. De maneira que contínuamos viagem, ele a cantarolar, eu afónico, ambos a fumar.
Se acredita em tudo o que ouve, o melhor é não ouvir nada.
Escolhidos, cortados, analisados, costurados, rasgados, colados, unificados, finalizados. O primeiro conjunto de contos. Não foi tarefa fácil. Eu quase a partir de férias. Eles a um passo de partirem por correio para outras mãos.
Por estes dias os céus tingem-se de cinzento, de fagulhas, de cheiro. Por estes dias, todos os anos o mesmo sacrifício, as narinas a arder, os olhos mudos, o espectáculo do mundo em directo a queimar a pele em lume brando. Por estes dias surge a lembrança de outro verão, tão longe e ainda assim aqui, à mão de semear, onde assistimos ao país a arder, nós tão longe a descodificar a desgraça em televisões estrangeiras, com rodapés enigmáticos, e o que ouvíamos eram as gentes das terras a carpir. Por estes dias passamos a noite a ver a nuvem de fumo sobre a cidade a resfolegar, a relembrar o carro a passar por entre as chamas na auto-estrada, o norte a arder, a montanha iluminada de noite, a coluna de fumo sobre o mar e nós tão pequenos.
Na praia não há um espaço livre mas isso não me incomoda. O mar tranquilo, um avião a riscar o céu. Depois piruetas, cambalhotas aéreas, parece perigosamente próximo da linha de água. Os barcos a passar. Uma pirueta, duas, três. Agora pirueta a girar sobre si próprio também. Foi assim que o outro morreu. Uma pirueta na avioneta para impressionar a mais-que-tudo. Tão bom rapaz, não fumava nem bebia. Os barcos a passarem. Ela assistiu a tudo, a cambalhota falhada, o avião a cair, o rapaz inteligente lá dentro, a queda fatal. Não fumava, não bebia. O velho forte é bonito e é feio, simultaneamente. Garantem-me que em Novembro vai ser palco de conspirações. Vem aquele muito importante, e os outros também. Os barcos a passarem. Eu a contar tatuagens. Parece que estou outra vez na Checoslováquia há doze anos. Tatuagens e filhos. Tantas crianças a caminho e tantas pessoas desorientadas. Na praia, um dia de sonho. Interrogo-me por que serão os melhores amigos tão parecidos? Não me pareço com ninguém. O helicóptero no céu com o contentor da água a oscilar. Os incêndios ao longe. O país a arder e esta água tão fria. Os barcos a passarem. Falas-me desta arquitectura desaparecida, estas construções, estes fortes que arquitectámos no mundo inteiro, que resistem à força do mar, que não cedem. Eu nunca tinha pensado nessa força, conversar é isto também, emprestarem-nos outros olhos, obrigarem-nos a olhar estupefactos para a força de algumas ideias. O mundo a mudar tão rápido. Neste dia de sonho, cheio de bons rapazes, os barcos continuam a passar.
Um dos textos que li aqui foi o Sem amor, sem abrigo apesar da temática não ser a mais apropriada, pensei que seria pertinente ler o texto mais procurado no blog. Infelizmente, como se adivinha, a maioria das entradas são pessoas à procura de notícias sobre os suicídios ocorridos no próprio dia. A partir desse facto foi inevitável fazer a viagem inversa, procurar eu novas histórias também. O texto originou igualmente alguns emails. Mas a viagem mais complexa aconteceu no próprio evento. Ao jantar alguém questionava-me o motivo de ler um fórum de suicídios. Não tinha uma resposta pronta, e a esta distância só me ocorre dizer que não percebo como não o poderia fazer. Talvez no futuro, quando o puzzle estiver completo, tenha uma resposta mais sapiente, por agora continuo intrigado o suficiente para o continuar a fazer apenas. A mesma pessoa curiosa pelos minhas leituras mórbidas tinha uma história para oferecer. Era a segunda pessoa a quem a contava. Um dia ao ir para o trabalho passou por uma ponte. Na ponte estava um homem sentado. O instinto alertou-o para a situação e decidiu parar o carro e abordar a pessoa. O pior aconteceu, o homem saltou. Há um medo em nós quando pressentimos que o relato não vai acabar bem, mas como não o ouvir? Mas a situação mais dramática aconteceu no dia seguinte depois da minha intervenção. Uma pessoa leitora do blog que compareceu ao evento, contou-me no jardim, por entre caipirinhas e planos de férias, que o filho tinha cometido suicidio. Não consigo descrever o momento. Faltam-me palavras, falta-me estrutura para alinhavar palavra atrás de palavra para descrever o que senti. Talvez alívio, por nunca ter passado por uma perda dessas. Como ultrapassar algo assim? Estranha viagem a de alguns textos, na memória perduram recordações alheias – o som que o corpo fez ao cair, o braço que ficou esfacelado na estrutura da ponte a tentar segurar o inevitável, o cinto que cedeu ao peso – e desejos de homenagem – será tempo de publicar os desenhos que ele era perfeito a fazer?
É sabido que uma excelente maneira de triunfar no país é obter sucesso no estrangeiro. E por estrangeiro subentende-se qualquer coisa já que ninguém se dá ao trabalho de verificar. Quanto mais exótico melhor. Anos e anos de batalha e trabalho são uma ninharia comparado a um aval positivo vindo de fora. É pois com prazer que comunico de antemão que o Homem na Cidade vai aparecer num jornal no Oriente.
Se estou alegre compro livros, se estou triste faço o mesmo. Sou pouco original e as estantes são sempre poucas para a minha falta de ideias. As prateleiras estalam perante o peso da minha ineficácia enquanto ser humano diversificado. Há filas duplas de livros, arrumo atrás os que menos seduziram. Há livros na cozinha e em cima da televisão. Acordo de madrugada e em vez de ir tomar café olho para as pilhas de livros. Há uns tempos atrás era fácil, era o sinal para mudar de casa. Desmatelava tudo até ao último parafuso, deitava coisas fora, reorganizava os tarecos, distraía-me do mundo e fazia planos. Mas eu agora não vou a lado nenhum, é aqui que quero ficar. É por isso que acordo de madrugada e olho para as estantes. Está na altura de comprar mais.
É prematuro fazer um balanço do ano mas um ano extraordinário justifica posts prematuros. No fundo, em sete meses, tive mais do mesmo: desilusões, facadas, alegrias, mediocridade, altos e baixos. A tempestade do costume. O que distingue este ano dos demais é a intensidade dos eventos. Um desamor não é apenas isso, é o pior que pode acontecer na distracção dos afectos ingénuos; uma amizade que traí, não é só a tristeza que isso causa é a perplexidade perante uma perfídia tão sórdida que nos falta palavras; a maldicência mostrou as suas verdadeiras lesões, perdi amizades também por isso, a injustiça de várias situações atingiram-me em pleno. Mas há também o outro lado. Os golpes de sorte sucedem-se pondo em causa até para mim, que vivo surpreendido com a cadência causa-efeito do mundo, se serão possíveis, tal as histórias recambolescas que os envolvem; novos amigos surgiram trazendo muito mais do que palavras vãs, que nada servem na hora das verdades. Na espuma do calendário nascem novas paixões relembrando todos os dias a sua grandeza comparado com os amores medíocres do passado. No final fico em saldo positivo e ainda vamos a meio. A luta continua.
Um tipo até pensa que descobriu uma tipa que escreve bem, com ideias genuínas e corajosa. Um tipo fica embeiçado, dá-lhe pontuação elevada e elogios. Depois descobre que ela escreve o mesmo a todos.
De um dia para o outro, sem mais nem menos. Um dia estava tudo bem, no outro todos os planos caíram por terra. Eu sei que estamos longe, tantos países pelo meio, as notícias chegam por chat mas a solenidade da mensagem merecia um telefonema, como recordo na minha infância, com cortes e chamadas a cair, ruído de fundo, gritos para que do outro lado ouvissem umas palavras sussurradas, tal era a distância. Mas não, soube por linhas mecânicas perfeitamente alinhadas sem condescendência à gravidade do assunto. Por osmose e solidariedade mostro a minha raiva, também eu já me cruzei com esse tipo de pessoas. Excelentes a criar expectativas e melhores ainda a destruí-las. A nossa capacidade de compreensão é sempre proporcional à quantidade de vezes que nos queimámos. Apetece-me ir furar pneus de madrugada, não que resolva alguma coisa, mas estou farto da lentidão do mundo e de receber mensagens destas. Apetece trocar o consolo por acção. Talvez opte por um spray, sempre requer menos esforço físico.
Correu bem. Embora falar para uma plateia não seja propriamente o que mais goste. Ao sair de cena, levei com um microfone e uma câmara em cima. Uns dias depois, ainda pálido do esforço, outra maratona para testar a minha elasticidade psicológica. Uma sessão de fotos, daquelas de fazer pose, endireitar as costas e colocar a mão num ângulo estranho. Completamente zonzo dei uma entrevista de duas horas em que não recordo nada do que disse. Há dias estamparam-me numa revista, eu sentadinho numa cadeira como se fizesse aquilo todos os dias, e agora é a vez de passar em loop na televisão umas incoerências que disse quando não estava no pleno das minhas faculdades. Graças a deus, algumas vezes passa a horas estranhas. Esta noite passou às três e meia da manhã, não que estivesse acordado para tal evento, sei porque a caixa de mensagens do meu telemóvel está cheia e pelo menos metade fazem questão de dizer as horas em que me viram a fazer tristes figuras. E isto a propósito da constatação, uma vez mais, de que não fui feito para isto, não podemos ir contra a nossa natureza. A Agustina é que tem razão, o sucesso é menos importante que um vestido bonito.
Mais do que uma boa história, uma forma magistral de a contar.
Jorge Leitão Ramos, Expresso, 17 Julho
A sério? Não senti nada. Para um filme do Roman Polanski esperava muito mais do que este chorrilho de clichés. Além de não dignificar em nada a minha profissão. Quando eu deslindo intrigas internacionais, para mais envolvendo a CIA, não fico por buscas no google. Uma oportunidade perdida para uma abordagem mais profunda do estado da política, os tentáculos do poder e evocar a figura de Tony Blair e a sua intervenção na Guerra do Iraque. Nem vale a pena comentar que qualquer comparação do argumento do filme à situação actual do realizador é no mínimo confrangedora. Não bastasse o argumento ser uma sucessão de bocejos (tal como o manuscrito da biografia, peça central de todo o argumento) a escolha de actores é uma piscadela de olhos descarada ao público feminino. E não pensem que falo apenas de Ewan McGregor ou Pierce Brosnam, essas carinhas larocas perdem toda a relevância quando sabemos que o terceiro papel foi atribuído a Kim Cattrall. O Francisco Ferreira no Expresso a partir de uma entrevista a Ewan McGregor chega à conclusão que Polanski acertou em cheio no casting para o seu ghost [writer] mas não menciona nem uma única vez esta evidência no casting. As regras do jogo mudaram e nisso Polasky é um mestre de cerimónias. Numa assentada situou o filme na América e fabricou uma absolvição colectiva inconsciente. É um tiro à opinião pública feminina americana que vai ser preciosa no seu percurso se tudo o mais falhar. A julgar pelas quatro estrelas atribuídas no Expresso parece que funciona, em duas páginas de crítica nem uma menção ao facto de Polasky ter saído da prisão domiciliária e escapado à extradição para os EUA na passada segunda-feira e a verdadeira mensagem do filme. Jornais para quê?
A presença dela reorganiza e faz brilhar todas as minhas partículas a nivel celular.*
* Lido num chat esta noite. A distância não existe quando as histórias acabam bem.
Um tipo passa a vida a desviar-se de arranjinhos amorosos, mas por mais que seja um ás na arte da fuga, de tempos a tempos acaba sempre por fazer figuras tristes. Por conseguinte, um tipo nunca acredita neste tipo de amor instantâneo, bom para os dias que correm mas ele também nunca correu ao sabor dos dias, portanto está tudo bem. Até ao dia em que apanha com um arranjinho que o deixa de cara à banda e a suspirar por mais. Este tipo está feito ao bife. Esse dia foi ontem. Este tipo sou eu.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
Agora e na hora da nossa morte - Susana Moreira Marques
Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES