O homem teve uma acidente na praça. Mota deitada no asfalto, o corpo sentado no empedrado, ossos à mostra. Talvez óleo, talvez os trilhos dos eléctricos. Lembro-me dessa noite no restaurante, conversas, comida e vinho, do acidente, de quem estava à mesa. Uma já morreu, outro esteve por um triz, e não éramos assim tantos. Alguém foi embora e uma das amizades está agora em perigo. Foi uma longa noite, parece que foi ontem que tudo aconteceu.
Ficas-me na pele.
Suspender o mundo num fim de tarde. Boa companhia, Coltrane e dois copos de vinho branco.
Há uma paz que desce gradualmente sobre todas as coisas. Prédios, pessoas, ruas, caixotes de lixo, pedras. Há um cansaço das horas a mais, o fígado a acusar o excesso, o olhar a pairar nas coisas mais esquecidas. Um baile suspenso, uma respiração pesada rente ao chão cheio de folhas caídas. Há um silêncio à espera do barulho todo.
É mais fácil escrever que falar quando és tu que estás do outro lado da mesa.
Lembro-me do tempo imediatamente anterior ao telemóvel, quando andávamos todos de “bip” na mão. Não foi assim há tanto tempo. O “bip”, ou “pager”, era um aparelho do tamanho de um maço de cigarros que recebia mensagens escritas. O processo era simples: quem quisesse comunicar comigo, tinha o meu número de bip, ao ligar o número a partir de um telefone fixo aparecia-lhe uma operadora a quem ditava a mensagem. Segundos depois, eu recebia no meu aparelho. Não podia responder directamente, mas podia ir ao telefone mais próximo enviar um bip à pessoas que me contactava. Hoje parece ridículo – na altura discutíamos entre amigos se “aquilo” não estava a acabar com a comunicação entre as pessoas (havia quem terminasse namoros enviando um bip...), e víamos o ridículo aparelho como uma revolução. E agora a conversa volta ao mesmo. Estamos a acabar com quê? Pedro Rolo Duarte, aqui.
Além de ter rido às gargalhadas, recordou-me o saudoso blog. O Pedro Ornelas, onde quer que esteja, achou piada de certeza. Inteligência e humor era com ele. Aconselho uma visita rápida antes que desapareça.
Dizem-lhe que não tem defeitos. E ele responde com uma lista. O olhar enamorado perdoa porque é cego, mas não deixamos de ser a súmula de tudo. Depois percebe que devia fazer uma lista das virtudes, o que o faz correr. E escreve. Mas desta vez não envia, e pensa que devia cingir-se apenas e sempre às coisas virtuosas e não perder tempo com o resto. Escreve furiosamente a tentar recuperar um tempo perdido que ainda sente o gosto na boca enquanto recebe imagens de outras cidades, outras histórias, o olhar do outro em pequenos rectângulos de pixeis. No fim descobre que vive um tempo extraordinário.
No café interrompem a conversa para tirar a minha bica. Quando a máquina silencia retomam-na no mesmo ponto. Os amigos estão contentes, o homem tem passado por ali a dar conta das novidades. Arranjou casa e agora gasta as horas livres em pequenas obras. Prepara-se para receber os filhos e é só nisso que pensa. São dois e o homem gosta muito deles. Os amigos estão contentes. Na minha rua tudo vai bem.
Sobre sete colinas, que são outros tantos pontos de observação de onde se podem desfrutar magníficos panoramas, espalha-se a vasta, irregular e multicolorida massa de casas que constitui Lisboa. Para o viajante que chega por mar, Lisboa, vista assim de longe, ergue-se como uma bela visão de sonho, sobressaindo contra o azul vivo do céu, que o sol anima. E as cúpulas, os monumentos, o velho castelo elevam-se acima das massas das casas, como arautos distantes deste delicioso lugar, desta abençoada região.
Fernando Pessoa, O que o Turista deve ver
A inteligência manifesta-se de muitas formas. A idiotice em muitas mais.
A começar a semana da melhor maneira. Agora venha o resto.
Um encontro casual na rua deriva na ingestão de cafeína a olhar para a cidade. Contam-me coisas tão extraordinárias que ao chegar a casa dou comigo com um pacote de leite na mão a olhar para o infinito por tempo indefinido.
Na mesma noite que ao ver umas fotografias fico aliviado – não sou que ali estou, são os outros –, fico também perturbado ao constatar que não há nada mais angustiante do que o sentimento podia ter acontecido.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
Agora e na hora da nossa morte - Susana Moreira Marques
Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES