Começou pela garrafa. Observou durante alguns minutos, passou o dedo pelo relevo das letras gravadas no rótulo, apreciou a cor, o pequeno depósito que o tempo denunciava. Não tinha a certeza, mas parecia-lhe a garrafa que tinha sobrado daquele jantar. Procurou o saca-rolhas. Abriu-a, cheirou o vinho, inspirou a mistura de aromas e o cheiro na rolha. Lentamente, verteu todo o conteúdo num fio pelo ralo. Sentiu o cheiro agora mais forte, enjoativo, a pia tingida de sangue. Depois partiu a garrafa com uma pancada seca contra a pia. Com o cabo do saca-rolhas esmagou os vidros maiores até só restar uma mão cheia de pequenos diamantes sem valor. Com as mãos em concha transportou o seu pequeno tesouro até ao lixo. Não deixava de o surpreender a volatilidade dos objectos, o pequeno milagre da metamorfose de uma coisa em nada. Ainda há pouco era uma garrafa, agora já não existia.
Então? Hoje não há nada a contestar? Ninguém ferveu com a minha escrita? Nenhum bigode em chamas por causa de um post? Lá porque modero os comentários não quer dizer que não publique os mais jeitosos. Vá lá, comparado com a animação dos últimos dias isto hoje está um tédio, até consegui escrever duas horas seguidas sem interrupções. Seus medricas.
Eu já achava estranho isto nunca ter acontecido. Numa semana este blog foi mais atacado que no resto do ano. Pois, pois. Como consequência os comentários passam a ser moderados. É a vidinha no seu esplendor. Querem zaragatas vão brincar para o 31 da Armada ou para o Jugular, aqui só há textos melancólicos e fotografias a preto e branco, não somos apologistas de emoções fortes. Vá, andor.
Jane Jacobs (behind the woman holding Save Penn station) and architect Philip Johnson
stand outside Penn station to protest the building's demolition in 1963
Devo muito a Jane Jacobs. Provavelmente a última grande activista americana, deixou um legado incontornável na luta por um planeamento razoável das cidades. O seu maior inimigo era o planeamento inflexível desde a base defendido por muitos como Le Corbusier. The Life and Death of Great American Cities é uma referência e defende a diversidade do espaço urbano contra a hegemonia que muitas vezes deriva na prática na destruição de velhas áreas para construir de raiz. Destruir é fácil, criar difícil, dizia Jacobs e toda a vida defendeu a mistura entre a velha e a nova arquitectura, a irregularidade contra a padronização. Os quarteirões deviam ser curtos, os edifícios albergarem diversas actividades e as ruas cheias de pessoas como medida contra o crime – eyes on the street, o conceito enunciado por ela ainda hoje é citado por muitos. A dança de actividades e pessoas distintas que uma zona velha cria ao longo de décadas uma vez extinta é impossível de recriar.
Enquanto espero aprecio a maquete branca do edifício, três minutos depois pedem-me que passe à sala de painéis de madeira e sofás de pele. Sento-me por três segundos, tenho de levantar-me e declamar o meu papel. Na garagem o carro fica sem marcha-atrás, são precisos três movimentos e três homens para o posicionar para a saída. Mais tarde chegamos ao destino sem conseguir colocar a terceira mudança.
Há dois livros que acompanham-me e encerram as melhores passagens da literatura erótica portuguesa – Sinais de Fogo de Jorge de Sena e Alexandra Alpha de José Cardoso Pires. De resto, em matéria de rebuliços amorosos, temos uma boa representação em poesia, quanto ao romance podemos falar de um desastre. Não faltam boas referências mesmo não caindo na tentação de evocar a sopa de peixe do José Rodrigues dos Santos por não sermos adeptos do humor óbvio. António Lobo Antunes tem uma situação que envolve um duche e um dedo no Explicação dos pássaros que é uma maravilha. Gonçalo M. Tavares (tu quoque, Brutus, fili mi!) estatela-se no Água, Cão, Cavalo, Cabeça. Ninguém disse que é fácil misturar soldados, cadáveres e prostitutas. Aliás, arrisco-me a dizer que qualquer texto que envolva prostitutas e sexo o respectivo autor deveria ser condenado a ler o Erotismo na Ficção Portuguesa do Século XX do António Mega Ferreira que deu um trabalhão a fazer por falta de material decente.
Um blog que é blog só alcança um certo estatuto depois de lhe fanarem uma ideia ou um texto. É com prazer que anuncio que alcançamos esse objectivo. Estamos satisfeitos, apesar do roubo ter sido protagonizado por raia miúda periférica. O próximo objectivo é ser roubado por um blog de referência.
(...) ela avançou, abriu as pernas com os joelhos em ângulo recto, colocou-se sobre o sexo dele e três vezes se baixou sobre o seu corpo. Depois avançou um pouco mais e cobriu-lhe o rosto com a túnica. Era o avesso da noite, uma mordaça asfixiando o grito, um azul carbonizado e espectral, a noite infinita e sem estrelas. E partiu. Ao abrir os olhos húmidos, viu vários clarões do flash de uma máquina fotográfica e ouviu uma gargalhada em que lhe diziam: "Para que jornal português quer que lhe mandem as fotografias, professor?"
O pior conto (?) erótico que li foi escrito por Eduardo Prado Coelho e encontra-se no Tudo o que não escrevi, Diário II (Paris, 17.05.92). É tão mau, mas tão mau, que entrou por justa causa, sem cunha nem amizades utilitárias, para o meu top de literatura imprescindível. Confesso que antes de evocar Prado Coelho experimentei algum desconforto. Não evocarás o seu nome em vão, disse-me o grilo que acompanha a minha mente torturada, mas recordei-me que já morreu e acima de tudo tinha sentido de humor. Quanto ao conto são inúmeras as razões para gostar tanto. Situado no Rio de Janeiro, no período final da ditadura militar, evoca o clima febril daqueles dias. As personagens femininas respondem pelos nomes de Bárbara Celarent e Sibila, oscilam entre a mulher fatal e o travesti, usam luvas negras até ao cotovelo em pleno Verão carioca e calçam sapatos vermelhos de salto alto de forma desequilibrada e insegura. Nem a Mónica Marques se lembraria disto. O personagem masculino atira gravatas para a areia – uma gravata no Leblon! que insensatez! – e o auge atige-nos sem piedade com o relato da violação do protagonista na praia por uma rapariga de túnica negra mascando incansavelmente chiclete. As referências às farpelas dos personagens são tantas que ponderei se o Tom Ford não estaria interessado em realizar o seu segundo filme. O protagonista é de tal forma um alter ego do autor que a meio do texto escapou uma gralha, numa mesma frase a primeira e a terceira pessoa confudem-se. Convém frisar que cresci a ler o Eduardo Prado Coelho, faz parte do plantel que guiou-me pelos livros e pela vida e por isso mesmo este conto é digno de figurar na minha lista, má literatura erótica é o que não falta, o seu encanto reside precisamente no autor. O problema deste tipo de literatura em relação aos outros géneros é que não é preciso apenas escrever bem, é fundamental perceber de sexo.
Saio à rua e vejo as folhas secas no chão, o largo coberto de amarelo desmaiado. Aconcheguei a gola do casaco enquanto passava um bando de pássaros em direcção ao sul. São os sinais para hibernar. Mais do que tempo de acção, é o momento para observar, o retorno ao essencial.
Depois do lapso linguístico de ontem, hoje fiquei sem palavras no pior momento. Pergunto-me se haverá esperança no dia de amanhã.
Ao jantar conto entusiasmado um encontro com laivos amorosos. Ia tudo muito bem até trocar, em alto e bom som, o nome da pessoa em questão por outro do passado que era suposto ser secreto. Freud explica isto melhor do que eu.
Conta-me a tua versão e dir-te-ei quem és.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
Agora e na hora da nossa morte - Susana Moreira Marques
Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES