Quando os escritores encontram-se no início de carreira não há quem não tenha um crítico literário no seu âmago e não tente suprimir os desvios à forma vigente de escrever, mais tarde, quando são famosos, elogiam precisamente o seu cunho único.
Pior que um domingo, só um feriado.
Ao jantar.
Homem 1 – Mas, então não concordas que certos actos devem ser punidos?
Homem 2 – Desagrada-me a ideia de vingança. Quando retalias da mesma forma tornas-te igual a eles.
Homem 1 – Mas a vingança também pode ser uma forma de justiça. Poderá ser uma forma de evitar que o mesmo crime aconteça outra vez.
Homem 2 – Prefiro acreditar que não há nada que não tenha o seu castigo merecido, mais cedo ou mais tarde.
Homem 1 – Mas deus não existe. E se no fim houvesse sempre um castigo, não estaríamos a ter esta conversa. Este diálogo prova que a maior parte das vezes não há castigo nenhum. Esse é que é o problema.
Homem 2 – Mas existe a tua consciência. A vingança nunca é solução.
Homem 1 – Sendo assim, estás à mercê de qualquer pessoa ou situação. Se alguém prejudicar ou insultar não será punido. Se isto acontecer a ti, e se não for um caso de polícia ou tribunal, a tua única resposta será não responder?
Homem 2 – Depende do caso...
Homem 1 – Se fores insultado publicamente, sem razão nenhuma, por exemplo? Não dirás nada?
Homem 2 – Já aconteceu. E reagi, mas não considero isso uma vingança.
Homem 1 – Se reagiste estás a dar-me razão. Embora eu não dê a mesma conotação negativa à palavra vingança. A vingança poderá servir para aplicar a justiça nalguns casos. Será a forma de reacção que define a justeza de resposta.
Homem 2 – Naquele caso acho justo ter enviado os homens.
Homem 1 – Os homens?
Homem 2 – Sim. Angolanos.
Homem 1 – ... ?
Homem 2 – São bastante eficazes e discretos. Nunca mais tive chatices. Se tiveres algum problema dou-te o número.
Homem 1 – Mas eu não acredito na violência.
Homem 2 – Olha que às vezes uma coça resolve muita coisa. É limpinho. Tens é de contratar os gajos certos.
Homem 1 – ...
Vingança, s. f., acto ou efeito de vingar; atitude de quem se sente ofendido ou lesado por outrem e efectua contra ele uma acção mais ou menos equivalente.
Se há duas palavras que são constantemente confundidas são justiça e vingança. Da primeira não há muito a dizer, aparentemente temos o seu significado correcto muito presente, com a segunda começam os problemas. O cristianismo, inscrição máxima na forma de ser portuguesa, e as décadas de ditadura trucidaram não só a vontade de desejo de acção como ofereceu uma conotação negativa à mesma. O resultado é desanimador. Num país sem uma justiça célere nos tribunais e uma opinião pública sem grande valor, o ofendido fica numa canoa sem remos à deriva das marés. Esse sentimento é perceptível no dia-a-dia, nas questões mais comezinhas. Se alguém se queixar de ter sido vítima de alguma ofensa é mais do que certo que a resposta dos seus pares é invariavelmente a mesma. Esquecer, não dar importância, no fundo nada fazer face à mesquinharia de que foi alvo, ou porque deve demonstrar a sua superioridade face ao sucedido ou por ser um esforço em vão qualquer tentativa de reposição da verdade.
Poderíamos pensar que escolher não enveredar pela vingança é uma ideia nobre, afinal olho por olho só deixa duas pessoas zarolhas, mas depois surge uma dúvida. É que ninguém vence o povo português quanto à mania de falar pelas costas, dar a sua facadinha de maledicência, e resolver estas questões em tribunais muito específicos, os que fazem justiça por mãos alheias. A pessoa, a maioria das vezes, não é julgada pelo que cometeu mas por o que alguém considera ser o que merece e a sentença é ditada não sendo sequer convocado o réu ou o criminoso. Os tempos mudam e a bufaria dos tempos da PIDE deu lugar ao silêncio, no entanto as duas formas de agir são prejudiciais de igual modo. Em vez da denúncia na calada, os amigos ou pessoas com interesse na sentença remetem-se ao silêncio, criando assim situações de injustiça no ímpeto de enfraquecer ou mesmo anular qualquer pretensão de defesa do ofendido. É folhear qualquer jornal e perceber como os grupos económicos e políticos já adquiriram o hábito, tão ao gosto da máfia, da cada vez mais forte lei do silêncio. Um silêncio que Brecht descrevia ao ter assistido a tantos terem sido levados, até, por fim, levarem-no a ele.
No âmbito das relações pessoais assistimos ao mesmo fenómeno. A lei do silêncio é particularmente eficaz, se um grupo de pessoas decide que algo é a verdade resta ao visado uma travessia no deserto. A verdade costuma ser adaptada à capacidade dos interesses do grupo que pode ir da profissional à amorosa. O silêncio, a forma mais cobarde de manipulação, pode ganhar muitas formas e atingir qualquer um.
Posso esquecer uma ofensa mas nunca esqueço o nome de quem a cometeu.
Não voltarei a ser a pessoa que esperam, diz o homem na publicidade da televisão. A conferência de imprensa fica suspensa nas suas palavras, as paredes da sala desmoronam para dar passagem ao homem, todo ele convicção em tons de azul. É um statement, é uma resolução, ele não vai voltar atrás. Nós não duvidamos. E se a publicidade o diz, é porque, mais cedo ou mais tarde, não voltaremos a ser o que esperam de nós.
Fotos de Garcia Nunes, 1970, Arquivo Fotográfico de Lisboa
A investigação dos mercados continua e hoje esbarrei no blog do Alexandre Pomar com o Mercado do Povo, antigo Mercado da Primavera, que realizava-se junto ao Museu de Arte Popular. Um texto do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria de Hotelaria dá-nos a conhecer a sua história. Não sei o que gosto mais, se do mercado ou do próprio texto, que é, em si mesmo, uma pérola. Os sublinhados são meus. A história é de nós todos.
1 de Fevereiro de 1975 – As autoridades do turismo do regime fascista organizavam todos os anos em Belém, perto do monumento aos descobrimentos e do Museu de Arte Popular, em Lisboa, uma iniciativa de promoção turística de características antiquadas, a que denominavam Mercado da Primavera. No mês de Junho que se seguiu ao 25 de Abril, os artesãos que aí expunham e vendiam os seus trabalhos, numa acção espectacular, cheia de incidentes, assumiram o controlo do espaço e solicitaram apoio do sindicato para ali continuarem em permanência, o que conseguiram.
No início de 1975, para garantir uma gestão organizada daquilo que se tinha transformado numa feira de artesanato, e instalar um restaurante a sério, em substituição das tascas de comes e bebes, o sindicato indicou o Amadeu Caronho que levou a tarefa a bom porto. O espaço passou a designar-se Mercado do Povo depois de assim ter sido baptizado por um dirigente do sindicato, numa assembleia-geral, em que um jornalista o questionou se estava de acordo em que a iniciativa continuasse a chamar-se Mercado da Primavera.
O Mercado do Povo passou a ser um local de referência, precursor dos bares das docas e da abertura da cidade ao rio, frequentado por sindicalistas, políticos progressistas, e pelos militares revolucionários do MFA e do Conselho da Revolução, que iam lá muitas vezes comer o seu petisco e beber o seu copo de tinto após as reuniões que faziam ali por perto.
Sou velho num corpo jovem.
Dez minutos na Rua Augusta a ver dois executivos a gamarem postais numa loja de souvenirs. As minhas horas de almoço são melhores que as vossas noites.
Por causa de um carro parado em segunda fila na Calçada da Estrela, outro a fazer uma ultrapassagem, assisti a um acidente aparatoso. Contei onze eléctricos parados, polícia aos molhos, caos no trânsito e muitos mirones a atirar postas de bacalhau. Eu ri-me secretamente a pensar no meu taxista e no caso do eléctrico desgovernado.
Mais histórias de mercados.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
Agora e na hora da nossa morte - Susana Moreira Marques
Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES