Manhã de céu negro, uma avenida numa trégua no dilúvio, um compasso de espera até voltar a cair e inundar todas as vontades. Na passadeira, pessoas encharcadas a aguardar o sinal para avançar. O trânsito, vindo do rio em direcção à grande praça, a ganhar velocidade, quarteirão a quarteirão. Um homem surge ao meu lado, ficamos com os ombros alinhados, nada de extraordinário numa passadeira tão antiga que já viu tantos homens à espera. Espera dois segundos, se tanto, que não contei pelo relógio, não é meu costume cronometrar homens à espera, e avança pela passadeira. Coxeia ligeiramente da perna esquerda, mas salvando esse pormenor, todo ele é resolução. Avança e atravessa as duas vias sem olhar uma única vez para o trânsito. Segue em passo decidido, a mancar suavemente, nem depressa nem devagar, vai no passo que o corpo pede. Ouvem-se buzinas, chiares de pneus, travagens a patinarem na estrada molhada. Enquanto o homem avança, paramos todos, pessoas dos dois lados do rio de riscas, trânsito, quatro rodas e eléctrico, e, por uns segundos, só vemos os passos do homem até que este alcança o passeio. Talvez tenha feito uma desfeita à morte, hoje não vencerás, terá dito o homem à caveira. Talvez não tenha nada a perder, ou será um homem de fé inabalável e sofra de desejos de parar o mundo. Seja a verdade algo que nunca seremos donos, o que é certo é o homem ter um salvo-conduto para a imortalidade deste momento.
Surpreendermo-nos a cantarolar alegremente, com um pé a marcar o compasso no soalho, enquanto lavamos a loiça. Apesar das várias tentativas, a musiqueta ainda não foi identificada mas parece provir dos anos oitenta.
Na rua sigo ao mesmo ritmo que dois homens que conversam sobre os seus amores e o o desejo das mulheres. Os tempos estão diferentes, diz um ao outro, o que elas querem agora são homens mais velhos, são os que têm dinheiro. Estará um a consolar o outro, talvez a introduzir a economia no tema difícil do amor, será contabilista, pergunto-me enquanto os observo melhor e verifico que já não são novos e nem têm ar de muitas posses. Decido-me pela consolação, talvez uma mulher tenha ido embora, já não faça parte da vida do homem. Se há coisa que necessita de explicação são as ausências dolorosas. No cruzamento seguinte paro na máquina do multibanco. Sentados na arcada ao lado, outros dois amigos de idade avançada. Um descreve ao outro uma mulher; sabe cozinhar que é uma maravilha, percebe da lida da casa, passar a ferro e outras coisas que tais. Explica com detalhe uma receita dela, um petisco refinado aos seus olhos, não há quem faça igual. Afino o ouvido, é uma vergonha, bem sei, isso de escutar as conversas dos outros, mas não resisto a homens a discutir o amor, acepipes e lençóis, perdidos no poço da sua geração.
A combater domingos desde sempre.
Tenho à minha espera uma empreitada grande, que irá ocupar-me muitas noites nos próximos meses e reduzir-me as já escassas pestanas. Talvez a graduação dos meus óculos aumente e tenho a certeza que no final não estarei mais lúcido. Tanto esforço não será para um romance de forte envergadura, nem temos a certeza se teremos uma composição digna desse nome. Se ainda assim, estimado leitor, com tão francas promessas, estiver disposto a ajudar este pobre diabo e tiver indicações sobre o paradeiro da estrutura de ferro do antigo mercado da Praça da Figueira, ficarei eternamente agradecido. Se a vida o abençoou com um avô ou avó de idade avançada cuja lucidez ainda seja um motivo de comemoração diário, será um excelente motivo para uma interacção familiar de grande qualidade e um contributo de peso para o meu problema de imaginação desenfreada. Se for o feliz proprietário de fotografias de Lisboa antiga e não souber o que fazer com elas, envie. Se o problema são as chaves de portas de entrada em locais de grande interesse histórico na cidade e não tiver visitantes e estiver disposto a oferecer uma visita guiada, prometemos ir de gravata e portarmo-nos bem. Lembre-se que é Natal, é uma grande oportunidade de não ser visitado pelos três fantasmas.
Contribuições de grande espírito natalício para umhomemnacidade@gmail.com. Assunto sério.
Logo a abrir, aparece-me pousada sobre o Tejo como uma cidade de navegar. Não me admiro: sempre que me sinto em alturas de abranger o mundo, num pico dum miradouro ou sentado numa nuvem, vejo-te em cidade nave, barca com ruas e jardins por dentro, e até a brisa que corre me sabe a sal.
José Cardoso Pires, Lisboa, Livro de bordo
...recorda vivamente a dicotomia desfolhar vs. folhear. Mas agora estou demasiado alcoolizado para continuar. Voltaremos a isto sem dúvida nos próximos tempos. É demasiado ridículo para deixarmos passar em vão.
Lentamente vamos conquistando o direito de não ter que conquistar nada.
Nunca acreditei em deus. Nem no céu ou inferno e o resto da parafernália cristã. Acredito num gabinete. Com secretárias e telefones a tocar. O céu aos meus olhos assemelha-se a uma esquadra da polícia, movimento ininterrupto, dramas e zaragatas de faca e alguidar em que acabam todos abraçados a cantar a uma só voz. Há uma sala onde estão os tipos que escrevem os guiões, cheia de fumo e marcas de copos de whisky nas secretárias. Às vezes estão inspirados e escrevem épicos, outros dias há que só escrevem porcaria, sonetos mal amanhados, frases incendiárias indignas de figurar num pacote de manteiga. Os sacanas trocam-me as voltas, dão-me cabo do enredo diário e da obra-prima que poderia ser a minha vida.
Uma greve geral para todos, são os meus votos.
... iguais a esta, se não for pedir muito (lembra-te que não tenho por costume pedinchar). Amanhã será sempre um desejo por cumprir, uma luta, um alcançar.
E agora vou ali dormir o sono dos justos que já não me aguento nas canetas. Viver pode cansar imenso.
... os maus vão a todo o lado.
(...) Sentou-se ao computador com a barba de três dias e de peúgas. [panorâmica da sala de estar deprimente, uma televisão ligada sem som, um estendal com roupa a secar] Começou a ronda no Facebook pelas fotografias das amigas dos amigos. Enviou indiscriminadamente a mesma frase dezoito vezes. "Olá. Parece-me que temos muito em comum." [close up do monitor, som das teclas do computador] Amigável, breve e suficientemente misterioso, um achado de frase. A experiência dizia-lhe que uma em vinte mordia o isco. Esperava ter sorte esta noite. Uma noite de domingo insuportável, solitária e triste. Na verdade não variava muito de todas as outras noites. Tinha recebido uma mensagem de resposta da ronda anterior, mas descobrira entretanto que era casada, o que era pena porque era muito gira. Decidiu mesmo assim que daria uma resposta. Continuou a ver perfis. Deteve-se numa fotografia, não era muito atractiva mas o currículo e os amigos compensavam esse pormenor. Enviou-lhe a mesma mensagem. A coisa boa das feias é que costumam responder sempre.
1º capítulo
... o Caetano Veloso passou por mim de táxi e deitou-me a língua de fora.
Onde escreve melhor é no eléctrico 25. Descobriu aquela rota nova, que o deixa exactamente no mesmo ponto que o outro, mas demora mais tempo. Por vezes leva o dobro do tempo a chegar do que é costume. Espera também mais tempo na paragem, que é muito mais longe do que a outra, é preciso andar muitas ruas, é preciso atravessar a baixa. Mas nesta paragem não há nada entre ele e o rio. Quando chega, olha para o painel e vê quantos minutos faltam para o eléctrico. São os minutos exactos que olha para a água, para o céu, para as gaivotas e os pombos. É naquela pequena viagem, mais comprida que a outra, que tem escrito sobre todas as coisas e sobre coisa alguma também. Anda a pensar sobre as regras que transporta na sua cabeça dentro de uma mala antiga de couro. O princípio, o meio, a reviravolta, o fim, o verso, o itálico, não fumar em jejum, não apanhar frio nos pés. Está farto de regras, de ir pelo caminho mais curto, de viver entre parênteses. Um dia destes, quando ninguém estiver a ver, atira a mala ao rio e não pensa mais nisso.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
Agora e na hora da nossa morte - Susana Moreira Marques
Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES