A mesma expressão encontrava-se, de resto, para onde quer que se olhasse, no rosto dos restantes espectadores. Porém, quando o fulgor da última sequência de imagens se dissipou de rompante, as luzes se acenderam na sala e o campo das visões se transformou numa tela vazia diante dos olhos da multidão, nem palmas eles puderam bater. Ninguém estava lá para receber a ovação, ninguém que se pudesse chamar ao palco para agradecer a mestria da representação. Os actores, que ali havia contracenado para fruição da assistência, há muito que estavam dispersos pelos sete ventos. O que ali se vira era tão-só sombras da sua produção, milhões de imagens fixadas instantaneamente, segmentos de acções que se restituíam depois do tempo, num ritmo alucinante, da forma como queríamos e as vezes que quiséssemos. O silêncio que a multidão mergulhara após a ilusão tinha qualquer coisa de letárgico e repulsivo. As mãos esquecidas no colo, impotentes, estavam diante do nada. As pessoas esfregavam os olhos, olhavam fixamente para a tela, envergonhavam-se de tanta luz e desejavam regressar à escuridão, na esperança de voltarem a ver, na esperança de depararem com coisas que, embora não pertencendo ao passado, eram transplantadas para o presente e retocadas pela música.
A Montanha Mágica, Thomas Mann
Não sei o que será pior, se o cego que não quer ver, se o louco que nega estar insano.
Procuro alma para partilhar insónias.
Poema inacabado e inédito do marido da poetisa, Ted Hughes, revelado recentemente, revisita os últimos momentos de Sylvia Plath e os acontecimentos dos dias anteriores, quando ele recebeu, antes do tempo, uma nota de suicídio. Last Letter é uma espécie de epílogo perfeito para uma tragédia de contornos shakespearianos: uma confissão.
...mas a pensar que gostava era de estar acolá e acompanhado. Troco palavras escritas por sussurros nos ouvidos.
Com a chegada da noite, o nevoeiro abraçou a cidade, avenidas, ruas, prédios, carros e habitantes envoltos em vapor, o rio a desaparecer pelo céu, a cidade a fugir pelos miradouros abaixo. O trânsito frenético, pára-arranca, pára-arranca, a minha urgência em chegar ao destino. Na esquina, em frente ao largo das cautelas, um homem desmaiado, um sono trágico, uma desistência no sítio errado. Muitos corpos à volta do corpo na calçada, ligam para ambulâncias, chamam a autoridade, coçam a cabeça, o que haveria de acontecer, pensam, no alívio de não terem sido eles a sofrer tal desgraça. No pára-arranca, fico imobilizado perto do homem e da pequena multidão, a desgraça para lá do vidro embaciado. O homem assemelha-se a uma criança, sou vítima de um fenómeno óptico, é o nevoeiro com certeza que desperta o meu imaginário, é alto o homem que dorme, nem novo nem velho, mas tão jovem não será. Mas com tantos corpos em pé, aquele que ali está deitado encolheu na fragilidade da situação, escorrega-lhe o peso da identidade pelos interstícios da calçada. Não há quem se ajoelhe para lhe dar dimensão, uma alma que lhe pegue na mão enquanto a ajuda não chega, ninguém oferece o colo para pousar a cabeça que assim no empedrado húmido nem parece humana. Quando o trânsito avança mais uma vez, o homem já não é mais do que um corpo que se carrega facilmente ao colo, leve como o nevoeiro. O carreiro de latas fumegantes continua a guerrear rua abaixo enquanto penso no destino, mais buzina, menos buzina.
Nevoeiro matinal com perspectivas de abertas ao longo do dia.
Às cinco da tarde penso que a lucidez é a minha cruz, às cinco da manhã que é o que me salva.
Grey Gardens
No final da sessão as pessoas dividiam-se, afinal era a Edie uma vítima ou não? Não sei o que seria da minha vida sem estas discussões.
Ninguém me convence que esta quarta-feira não torna a ser feriado.
A conversa girava em torno da afectividade e da representação, o que mostramos e escondemos, seguia ligeiro o carro pela avenida paralela ao rio. Diz o meu amigo que encontramos pavões e cisnes, é certo que raros, mas o mais comum é encontrar galinhas. Galinhas com penas espetadas no rabo a imitar pavões. Eu rio-me da metáfora, mas na verdade talvez isto não tenha piada nenhuma.
Estava eu a sair de um evento há umas semanas e encontro casualmente um amigo. Ficámos à conversa na rua e subitamente passa na direcção contrária uma pessoa pela qual o meu coração bate há muito tempo. Fiquei petrificado quando vi o meu amigo a chamar a pessoa em causa e a cumprimentar efusivamente, não fazia ideia de que eram tão íntimos, nem sequer conhecidos. Apresentam-nos e dou por mim com a pessoa à minha frente de olhos dengosos a olhar este vosso criado. Tenho um ataque merdoso de insanidade e não digo uma para a caixa. Limito-me a meia dúzia de palavras de circunstância. Nenhuma tirada inteligente, nenhuma graça de jeito, nenhum comentário que fique para a história. Nada. O deserto. O meu cérebro sofreu uma lobotomia temporária e abandonou-me num momento crucial para a minha felicidade futura. Filho da mãe. Nunca mais esbarrei na pessoa, a vida é uma merda e depois morremos. Hoje chego a casa e venho a pensar neste evento funesto, tenho um discurso preparado ao pormenor silábico em que consigo misturar inteligência, humor e sedução em três curtas frases. Uma arma pronta a disparar em caso de assalto súbito, o problema é saber onde é que pára a pessoa. Enquanto penso nisto, que a cidade afinal é um território imenso, ligo distraído a televisão e eis que a vejo a falar em directo. De uma assentada não só a vejo como sei onde está naquele preciso momento, nunca mais digo mal do gabinete. Agora é só atravessar a cidade, enganar uma dezena de seguranças, entrar no estúdio de televisão e dizer as três frases. Desta vez não admito uma derrota.
Já não bastava a do vinho, hoje descobri que também sou alérgico a pessoas idiotas. Depois dos trinta a vida complica muito.
Mais uma noite com sintomas semelhantes e comprovo uma forte suspeita. Alergia ao vinho tinto. Uma daquelas coisas que não lembram ao diabo. Não sei onde é que vou encaixar esta descoberta na minha vida boémia desregrada.
Acabei de assistir a um filme com a pior tradução alguma vez vista, "ruas cheias de concrete [betão]" passaram a ruas concretas.
Também tenho coisas fofinhas na pasta dos inclassificáveis, isto não é só javardices entre espécies.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
Agora e na hora da nossa morte - Susana Moreira Marques
Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES