Revejo os posts escritos na última semana e não há um sem sílabas a menos, erros, falta de concordância nos sujeitos, verbos ao lado, palavras repetidas até ao enjoo. A lista é extensa mas existe uma boa explicação. Três semanas a dormir quatro horas por noite. A funcionar a cafés não vou longe, o problema é ter a ilusão que sim, e por isso continuo a martelar teclas. Esta semana subi a fasquia para as cinco horas e já estou mais lúcido. Em vez de sílabas parece-me que já só como letras. O objectivo é chegar às seis horas e meia por noite e atingir um patamar de concordância entre a escrita e a realidade. Mas claro, também isso poderá ser uma ilusão onírica.
I.
Recebo um email de alguém que não reconheço o nome. Duas linhas apenas: A partir do dia de hoje este já não é o meu email. Peço-vos que reencaminhem as vossas mensagens para o email... Faço um search pelos emails todos. Nada. Procuro o nome da pessoa na lista do telefone. Zero. Procuro mais destinatários na mensagem. Nenhum. O email é dirigido apenas a mim. Ainda não nos conhecemos e invade-me a sensação de estamos a acabar qualquer coisa.
II.
Debaixo da porta deixam-me um recado escrito no verso de um flyer de uma festa. Em quatro linhas escritas com esferográfica preta cabe toda a mensagem. A apresentação, o nome, onde mora, e dois destinos possíveis para deixar as calças beges de homem que deixou cair e voaram para o meu terraço. Escolho uma das duas hipóteses de entrega do objecto voador e assim procedo. Nunca conheci a pessoa nem ela deixou cair mais nada.
III.
Telefonam-me três dias antes a relembrar-me para ligar-lhe. No dia em questão telefonam-me outra vez. Não te esqueças, dizem-me. Peripécias várias fazem com que o dia passe a correr e eu sem fazer a maldita chamada. À noite lembro-me e estou dentro de uma sala de cinema às escuras. Nada a fazer. A partir daí passo os dias a ligar-lhe. Às horas mais diversas, quando acordo, quando vou fumar um cigarro, entre trabalhos. Nunca atende, embora toque insistentemente. Dão-me coordenadas precisas, horas em que atende de certeza. Até agora sem sucesso. Os dias passam. Não tem caixa de mensagens. Tem 89 anos. Poderá ser o meu último telefonema. Vou continuar a ligar até que atenda.
[Imagem fanada ao VA]
O Vidro Azul é o programa de rádio que mais vezes colocou a minha vida em risco. Aos domingos à noite, depois de estacionar, era regra ficar dentro do carro a ouvir o fim da música que estivesse a tocar. Calculando todos os sítios manhosos onde já estacionei o quatro rodas é uma sorte não estar agora a ouvir o programa na eternidade. O podcast salvou-me a vida. Obrigado, Ricardo Mariano.
Tente cumprimentar todas as pessoas que conhece, mesmo que remotamente; se não conhecer ninguém, melhor ainda, sempre mostra o quão socialmente extenuante poderá ser sair consigo; beba tudo o que apanhar à mão, aos pés deixe para o final da noite; catrapisque todas as ex-namoradas que encontrar, se tiver o azar de não encontrar nenhuma, finja sem hesitações; e depois disto tudo é quase garantido que o seu telefone não voltará a tocar, pode ir descansado para casa apreciar bons livros e escrever umas linhas.
Copacabana, Marc Fitoussi, 2010
[É a Babou e eu a sonhar com o Rio de Janeiro.]
Que não respondam ao bom dia. Nem à boa noite.
Ao serão, eu sabia tudo sobre a queda do governo, as eleições no Sporting e a queda aparatosa da Merkel. Ela deu-me as notícias do prémio do Souto Moura e da mudança de regime no CCB.
Mais um domingo despachado.
Hoje já não é a taxa de analfabetismo que temos de combater, são as novas formas de iliteracia. Há tempos, num artigo sobre novos media, alguém afirmava que o novo analfabetismo é a infoexclusão, já não se coloca a questão de compreender a linguagem, mas se tem acesso e domina a informação ou não. Neste campo estamos longe de um patamar aceitável. Defronto-me todos os dias na minha vida pessoal e profissional com casos gritantes de iliteracia e alheamento, não compreendendo na maior parte dos casos como é possível a progressão na carreira ou alcançar cargos de chefia. No último ano assisti a várias situações no mínimo caricatas. Um profissional reconhecido, e recentemente professor universitário, que não sabia escrever, com erros ortográficos de nível primário; várias pessoas que, depois dos bancos caírem e de meses de notícias na comunicação social, não faziam ideia da existência do BPP e do João Rendeiro; vários que vão trabalhar para os ministérios sem saber o nome dos ministros; uma pessoa que há poucos dias numa discussão política afirma de forma convicta que a Zita Seabra continuava a pertencer ao corpo dirigente do PCP. Poderia estar o resto do dia a dar exemplos. Todas as situações descritas implicaram pessoas com curso universitário, em alguns casos doutoramentos, e bem colocados em cargos profissionais. Ou seja, que estudaram, tiveram acesso, têm meios. Esta semana, a propósito da recente convulsão política, vivi mais uma situação no mínimo constrangedora. Na quarta-feira, a poucas horas do governo cair e depois de uma semana em que não se falava de outra coisa nos jornais e televisões, ao fazer menção ao facto numa conversa, alguém perguntou: "Queda do governo? Onde?". Por onde entende-se país. Este, o nosso, que não conhece a palavra exigência.
Sempre que vejo um anúncio a bebidas alcoólicas, cheio de gente contente e aos pulos com vidas espantosas, penso na elevada taxa de alcoólicos no país.
Otto Preminger
Apesar da greve nos transportes, de uma crise de sinusite aguda e uma ressaca que não lembra ao diabo.
No fundo, oscilamos entre artistas e funcionários do modo burocrático de viver.
Uma noite fora e voltamos ao mesmo. Ao chegar encontro a casa de trombas. Na minha ausência entreteve-se a fazer gato-sapato da ordem doméstica. Vamos à lista: computador com ecrã preto (não pifou, a wallpaper passou misteriosamente de azul a noite cerrada, nenhuma explicação válida para tal fenómeno); encontrado um dólar na mesa-de-cabeceira; a televisão não funciona; fiquei com dois puxadores de porta nas mãos; uma lâmpada fundida para trocar.
O mundo é do tamanho do meu olhar.
August Sander, Wollenburg,1938
Todos as manhãs chego acompanhado do grasnar feroz das aves. Não é particularmente agradável, são gritos no ar, na copa das árvores e nos telhados. É minha convicção serem araras as culpadas, mas pode ser tudo pura imaginação, nunca as vislumbrei para confirmar. Atravesso o jardim e as ruas de ouvidos atentos, nariz espetado no ar, a esbarrar em pessoas tão estremunhadas quanto eu. Ao fim do dia, a mesma coisa. Só as deixo de ouvir na boca da avenida, o bairro das gaiolas nas costas. Dou ordens aos pés e liberto a cabeça e os olhos. Uns que trabalhem para o prazer dos outros, toda a vida andámos assim. Meto a eito em direcção ao segundo jardim, passando pelo velho cemitério inglês. Cumprimento sempre a Charlotte, segunda campa à direita, que se não me vê passar fica preocupada. Um dia destes, esse tempo que nunca mais chega, não passo só por ela, entro pelo portão de ferro, e suspendo o tempo para perguntar-lhe como corre a vida. Ou talvez convide a minha amiga para dar pão aos patos no lago, sempre lhe fazia bem apanhar ar. Vejo a primavera a chegar, mais perto a cada dia que passa, de mansinho vai-me aparecendo no caminho. Quando me vê mais cansado ou sisudo faz-me cócegas. No outro dia mordeu-me uma orelha.
M.
Fuma cigarros de enrolar, gosta de tabaco fresco numa tradução selvagem do inglês, mas a certa altura pede para fumar dos meus. Fortes, as saudades que tem do tabaco forte da Alemanha. Por causa dos cigarros acabamos na varanda com vista para o vale, prédios, janelas com luz, igrejas e ciprestes. Senta-se no balcão da varanda só com uma perna a prender a fragilidade do corpo ao prédio, ao estuque, aos terraços e telhas. Isto desequilibra-me, apesar dos meus dois pés na terra. Está longe de casa mas já esteve muito mais. Por causa do tabaco, descreve-me a mãe e os aeroportos onde se podia fumar e onde agora tudo é demasiado proibido. Andou pela América do Sul, países e fronteiras, e numa cidade onde era suposto ser só uma passagem, ficou presa a um animal e um hospital. Sozinha, internada com um parasita num pé que começou a comer-lhe a carne, numa Venezuela profunda onde só recebia soro e antibiótico. Os dias a passarem e ela a fumar escondida na casa-de-banho. Depois, por fim, fumava na varanda do hospital, com uma perna a segurar o corpo à alvenaria. Haveria de sair dali e noutro país matar o bicho, salvar o pé e reencontrar rostos conhecidos.
F.
É belo, sabe-o, e o corpo não denuncia a idade, parece mais novo. Na realidade é ainda bastante novo. Cinco anos no Dubai, a servir em aviões, e um dia surge uma oportunidade irresistível. Perde-se de amores pela ideia e decide fazer as malas. Aterra no Brasil na senda de montar um negócio. Fica por lá uns anos, apaixona-se pela música. Uma festa numa noite de calor perfeita, um antigo bordel recuperado, lanternas no jardim e pessoas a dançar. O negócio naufraga. Perde tudo. Volta à cidade e tenta sobreviver depois de tantos anos fora. Perder tudo significa neste caso não ter nada, absolutamente nada entre mãos. Faz festas ao cão da casa, gostava de ter um, mas um animal é uma responsabilidade que não pode permitir a si mesmo neste momento. Apesar do revés da fortuna é optimista, não pressinto rancor, culpas ou remorso. Encara apenas como um risco que decidiu correr. Para correr é preciso arriscar.
A.
Chegou à cidade acompanhada de amigos, com planos e objectivos. Passaram meses e quando todos regressaram ela decidiu ficar. Diz-me que comprou uma passagem de regresso, mas tenho a sensação de que talvez não seja esse o final da história. Conta-me o percurso do bisavô alemão que chegou ao Brasil quando a Segunda Guerra acabou e estabeleceu-se no sul. Casou e teve filhos. Um dia foi embora. Para outra cidade, outro casamento, outros filhos. Na verdade, não sabe se foi assim que aconteceu. Parece que vinha do lado mau da guerra, os derrotados, os que perseguiram. Simplesmente nunca mais tiveram notícias, ficou um apelido invulgar e uma ausência dolorosa. Talvez conte esta história porque no íntimo sabe que também ela não vai regressar. Quando a ditadura militar proibiu que falassem alemão, quando queimavam livros, quando tudo parecia sem sentido, falavam-lhe na língua materna e ela dominava a linguagem, agora diz que vacila a falar, perdeu a fluência. Talvez volte, talvez não.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
Agora e na hora da nossa morte - Susana Moreira Marques
Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES