Sou o único da minha idade a cumprimentar os condutores dos eléctricos. Fui o único dos meus amigos ao jantar que não reconheceu o apresentador do Hugo.
Sofrer de insónias crónicas e adormecer na única altura em que era necessário estar acordado.
Como pode ser-se idiota e, ao mesmo tempo, feliz, pergunta-me um leitor? Pois explico já. A idiotia e a felicidade são ideias muito vagas, difíceis de cingir em conceitos de circulação universal, digamos. Mas, pensando melhor, acho que certa idiotia é susceptível de conferir ao idiota seu proprietário (ou seu prisioneiro) uma espécie de segurança em si próprio que o levará, em determinados momentos, julgo eu, a uma beatitude muito próxima do que se pode chamar estado de felicidade.Assim sendo, não vejo incompatibilidade entre o ser-se idiota e o ser-se feliz. Bem sei que há várias maneiras de se chegar a idiota. (...) Se tivesse casado com ela (...) talvez tivesse sido feliz - não se sabe - idiota e feliz. Assim, fiquei longos anos idiota e infeliz, infeliz por ser idiota e saber que o era e que não podia deixar de o ser. Ora, um idiota que é infeliz por saber que é idiota já pode estar a caminho de deixar de o ser. É uma possibilidade. É a tal luz no fundo do túnel, como se disse tantas vezes a propósito da situação económica deste idiota de país.
Não se espante, por conseguinte, o leitor de que um qualquer idiota possa, ao mesmo tempo, ser feliz. É, até, assaz corrente. Há idiotas que se consideram inteligentíssimos, o que é uma forma muito comum de idiotia, e extraem dessa certeza alguma felicidade, aquela maneira de felicidade que consiste em uma pessoa se julgar muito superior às que a rodeiam.
O leitor gostaria de ser ministro ou secretário de Estado? Pois fique sabendo que há quem goste, embora - será justo dizê-lo - também há quem o seja a contra-gosto, por dever partidário ou patriótico. Os idiotas, de modo geral, não fazem um mal por aí além, mas, se detêm poder e chegam a ser felizes em demasia podem tornar-se perigosos. É que um idiota, ainda por cima feliz, ainda por cima com poder, é, quase sempre, um perigo. Oremos. Oremos para que o idiota só muito raramente se sinta feliz. Também, coitado, há-de ter, volta e meia, que sentir-se qualquer coisa.
Idiotia e Felicidade, Alexandre O'Neill, in "Uma Coisa em Forma de Assim"
O Facebook fechou hoje a minha página sem aviso. Três mil e tal amigos, não contando com os mil da página de fans e as mensagens e contactos de um ano e meio foram à vida. Perderam-se e não é possível recuperar. Mas como sou teimoso o blog já tem uma nova página aqui.
Atropelado pela Maria de Bélem pela esquerda e uma câmara de filmar em contramão.
Há nos autores actuais uma tendência para camuflar a falta de talento com humor ignorando que o humor é das coisas mais difíceis de ter talento.
A semana finda com uma ida à feira de livros em saldos. Ataco as prateleiras na senda de aumentar a minha colecção de autores portugueses e na primeira ronda encontro vários volumes susceptíveis de serem adquiridos. Quanto aos preços deparei-me com critérios fora do vulgar. Alexandre O'Neill e João Pereira Coutinho a 2.50€, Manuel Alegre a 5€ e Rodrigo Moita de Deus a 6€. Alas políticas à parte, fiquei sem perceber esta inflação de preço de Moita de Deus perante os outros autores, até porque o Manuel Alegre era o única a ostentar capa dura. Depois de medir e pesar os volumes para averiguar o melhor rácio tamanho/qualidade/preço, acabei por optar pelo O'Neill por duas razões. A primeira é que tenho a felicidade de morar no mesmo prédio onde outrora viveu o escritor, facto que aliciou-me no momento da compra face à perspectiva de levar o O'Neill para casa no duplo sentido. Sempre gostei de actos simbólicos desta natureza. A outra razão é estar num momento de introspecção social, vulgo falta de paciência, e dos quatro é o único que está morto e é sabido que um defunto chateia muito menos que um vivo.
* post corrigido sob a nova lei de recolher obrigatório de cinco horas de sono por noite.
No filme, o homem queixa-se do fato que ficou sujo. Na legenda, o facto ficou imundo.
Já não saber qual é a última música da pista.
A senhora do café aproveita a minha entrada para fazer a piada. Temos uma troca de graçolas diárias combinada para confundir o quotidiano. Faz sinal com a cabeça para uma mesa de um casal de velhotes. Estão aqui desde o meio-dia, são cinco da tarde. Ele é surdo, ela tem alzheimer. Que lhe parece? O melhor é marcar hotel. Rimos. Sento-me a tomar o café com vista para a parelha improvável. Ela tem oitenta e muitos anos, ele já fez noventa. Ele era advogado e continua a ser o procurador dela. Discutem animados um caso antigo, um casamento que se desfez. Aquando do divórcio a mulher ficou sem nada. Antes do 25 de Abril era comum neste tipo de situações, embora o divórcio ainda fosse raro. Ele replica dizendo que era um casamento em regime de separação total de bens. Isso não era separação total de bens, era um roubo, diz ela. Para doente de alzheimer é mais lúcida que muita gente que conheço, penso eu a tentar esticar o café. Para surdo, ele ouve-a sem perder palavra. Depois falam de uma casa que parecem conhecer bem. E de pessoas e memórias em comum. A mãe dele era uma pessoa de má índole. Na realidade era mesmo má, palavra deles. Parece que estragou os planos e as vidas de muita gente. Não fosse a mãe sem coração e teriam casado, revelam os dois no café numa tarde de sol.
Sempre que algo corre mal no país aparece logo alguém a defender ideias para correr ainda pior.
Nunca confiar em pessoas que interrompem a conversa ou falam por cima. Se tratam assim as palavras dos outros, o que farão ao resto.
Demorámos longos minutos a perceber se era a missa certa. Percorri as filas de bancos à procura de rostos conhecidos e mesmo quando os encontrei não fiquei convencido. Poderiam estar ao engano também. Mesmo assim decidimos ficar naquela missa. Logo se veria se ainda sou capaz de decisões sapientes. Passou um ano e por esse motivo aqui estamos. Venho à espera de discurso a condizer, não estou preparado para um padre a contar uma história de adultério, ou sexo desbaratado nas palavras dele. Depois há a senhora pequenina que abre uma portinhola de talha dourada no altar. Duas vezes marinha ela pelo altar e aquilo é mesmo perturbador. Começo a considerar estar na pior missa da minha vida. É inevitável distrair-me, a olhar para o tecto da basílica com olhos de carneiro mal morto, a pensar noutra missa que perdi e não há maneira de me perdoar. Uma missa em que o padre explicou ser a cerimónia para os vivos, o defunto já lá ia à vida dele (passe a frase parva de duplo sentido). A única missa que nunca poderia ter perdido, quem falava detinha a razão, as palavras eram a minha despedida. Conhecendo eu o defunto como conhecia, o padre estava certo. Estivesse ele presente na missa e tinha insultado o funeral de alto a baixo, não era pessoa para estar calado, ainda para mais sendo a festa dele. Palavras é que não lhe iriam faltar. Enfim. Não tendo estado presente contaram-me como tinha sido, mas foi a frase final, terias gostado das palavras, que coroou a minha grande falta e tristeza pela ausência. Enfim, enfim. Voltando a esta missa. A este flagelo actual. Esforço-me por prestar atenção à história pecaminosa de luxúria e redenção. Amén, corpo de Cristo, joelhos e benzer, já não sei se por esta ordem, mais a senhora do altar. Mas agora percebo que o pecado era só parte do enredo, afinal do que se falava era da mentira e do erro. Da acusação falsa, do colmatar a falha com a acusação néscia, e, coisa mais preciosa, que a idade não retira o poder ao erro, ele poderá ser cometido a qualquer altura e por todos. No fim dou a mão à palmatória e penso que, acaso ou não, até foi o discurso mais apropriado para este dia. E até o adultério fez sentido.
Ao contrário da ideia vigente, nos restaurantes conotados com o gossip político não janta ninguém que tenha informações quentes. Aí só aparece quem desespera por saber alguma coisa ou precise realmente de um bife fora-de-horas (ver casos de anemia). As informações a escaldar passam em restaurantes onde a perspectiva de encontrar alguém do meio é nula.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
Agora e na hora da nossa morte - Susana Moreira Marques
Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES