Enamoramento - masc. sing. de enamorar; princípio de todas as coisas, viagem de descoberta do outro.
Reparei primeiro no tablier. Coberto de autocolantes, bonequinhos, peluches, medalhas, bugigangas. A parafernália continuava alegremente pelos bancos com lenços e penduricalhos. Quando olhei para o tecto e descobri mais calquitos, comecei a ficar intrigado. O taxista – meia-idade, poucas palavras – não denunciava a nacionalidade, para todos os efeitos falava português, mas eu imagino-o como o típico motorista indiano a guiar uma decoração ambulante. Por acaso, se conjugasse as barbas fartas com um turbante poderia facilmente transportar-me para uma rua de Bombaim. Volto à decoração e no meio daquilo tudo encontro um autocolante da cidade de Aveiro. Lá se vai a fantasia. Descubro um pirilampo mágico vesgo e roxo a abanar as antenas para mim e uma catafrada de autocolantes almofadados com bonequinhas japoneses. Os tons cor-de-rosa e vermelho dominam o cenário e até o volante tem direito a fitinhas que abanam a cada guinada. Quando pensei que já não aguentava com tanta mariquice pegada, o motorista atirou pela janela do taxi para a via pública uma valente e consistente escarreta.
A persistência em mim é uma espécie de fé.
Estupidamente feliz.
Vou só ali dormir um par de horas e já publico o último capítulo.
Life is very, very strange, and then you die.
Cheguei a casa e não tinha o coração comigo. Estes roubos urgem serem severamente punidos. Não deveria ser permitido cruzarmo-nos com criaturas diáfanas à solta que pedem cigarros sem avisar e nos desviam das conversas confortáveis de sempre. Deveriam ser multadas sem dó quando decidem raptar incautos para desfiar histórias de trufas e restaurantes com anémonas. E julgadas em tribunal marcial por dizerem tudo com graça, olhos dengosos e cabelos ao vento. Se tudo acontecer ao entardecer, a hora mais perigosa do dia, deveriam ser aplicadas duras sanções. Mas o castigo maior ficaria reservado por despedirem-se com palavras sussurradas ao ouvido, sem largarem o nome, e com corações alheios pela trela. Raios partam.
Trabalhar num open space repleto de pessoas com muros no pensamento.
Com ganas de entrar em período de reflexão indefinido.
Família, amigos e pessoas importantes na minha vida ensinaram-me a combater aqueles que atacam, a ter costas largas, a não ceder, a desprezar o vil e a mentira, a curar facadas nas costas. E ainda bem. Mas nunca ninguém me ensinou o que fazer em relação ao amor em excesso.
Ainda hoje em dia, muitas pessoas de disposição materialista continuam a apreciar explicações metafísicas, porque estas encontram algo de muito significativo em coisas que outros pontos de vista consideram desagradáveis ou mesmo desprezíveis. Quando alguém se sente insatisfeito consigo próprio, pensa imediatamente que a cama tem de ser posta no outro canto do quarto, ou que os estrangeiros é que têm a culpa, ou até mesmo os extraterrestres. Nunca se sentir responsável por nada e achar tudo interessante ao mesmo tempo, este é um sentimento que devemos à metafísica. As pessoas andam à procura de um prodígio maravilhoso que resolva todos os conflitos, de uma salvação imediata e definitiva.
Russendisko, Wladimir Kaminer
Decidi fazer uma pausa e saí da gaiola em direcção ao jardim. Abandonei o corpo num banco e fechei os olhos por uns segundos para espantar o cansaço dos dias. Sinto um bater de asas perto de mim e é quando o vejo – castanho, pequeno, impávido. Faço uma aposta comigo próprio, se serei capaz de lhe pegar antes que esvoace em direcção ao céu. Vou de mansinho, rastejo, dou pequenos estalinhos com a língua para o sossegar e eis que sou recompensado com um corpo quente entre as mãos. Asas, bico, olhos, coração e tripas. Deixa-se pegar sem queixumes. Regresso à caixa-forte com um sorriso de orelha a orelha, mostro aos outros o animal aninhado, armo-me em parvo a mostrar a minha habilidade. Quando volto ao jardim para o deixar partir lembro-me do outro pássaro num passeio pelo norte há três décadas. A montanha numa tarde de calor indolente e a capela branca a espreitar no cimo do monte. Quando alcançamos a porta principal encontrámos o cadáver. Deitado de lado, as duas asas juntas, a cabeça na laje. Os adultos olharam para o pequeno corpo ainda quente e suspiraram. Parece que fez de propósito, desejou morrer à porta de Deus. Foi com o pássaro moribundo que intuí aos cinco anos que seria sempre agnóstico.
E os casos extraconjugais e os divórcios também.
De muito mau gosto dar facadas nas costas dos amigos numa sexta-feira 13, dia de Fátima.
Quando digo algo é a única pessoa do grupo que não olha nos meus olhos. É gentil e calorosa com todos menos comigo. As poucas vezes que me dirige a palavra é sempre para discordar. Não tenho dúvidas. É amor e do profundo.
Que no passado espatifámos todo o dinheiro da CEE sem deixar obra feita. Que existe uma forte probabilidade de não pagarmos o empréstimo actual. Que é pouco provável que a lição seja aprendida.
A minha mãe tem razão, no A causa foi modificada.
...que os homens são as novas mulheres. Não é teatro, é genuíno. Sinal dos tempos.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
Agora e na hora da nossa morte - Susana Moreira Marques
Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES