Aufere-se o grau de sentimento pelas vezes em que aceitamos, fazemos delete ou somos capazes de esquecer.
Reconheço os sintomas. O espaço rarefeito entre o desespero e o fim. O medo, do finalizar de algo, e, pior, o receio de mais tarde recomeçar. As jogadas perigosas, a roçar o suicida, os sentimentos secundários, os terceiros elementos, as personagens periféricas a acenarem para palcos habitados por actores indiferentes. Eu sei reconhecer. Mas ainda assim é sempre uma surpresa amarga assistir à peça no centro do palco, mesmo que não tenhamos nenhum papel específico a não ser observar e sermos testemunhas das últimas palavras no genérico.
No mesmo espaço, dois sons em sintonia: um grilo a cantar à semelhança de uma noite de canícula no campo; a praça coberta de música de dança como numa pista de discoteca.
A Miss Pearls enaltece-nos com o convite para responder ao questionário literário que percorre a blogosfera na última semana. Enaltece a minha pessoa porque pressupõe que ainda leio ou sei o que é um livro. Pura ilusão típica das amizades mas prometo dar o meu melhor que inclui não mencionar o Em busca do tempo perdido.
Há quem seja pelo estômago. Quanto a mim, até Setembro, sou conquistado por convites para visitar o mar.
Há ruas para todos os sentimentos na minha geografia sentimental e vida azarada. Há a rua na qual o meu carro foi rebocado e multado mais vezes, por exemplo. Há a rua onde sempre que a percorro não consigo evitar olhar para uma determinada janela e ninguém sabe a história porque nunca a contei. Há também a rua onde apanhei um dos maiores cagaços das minha vida. Ontem descobri a rua mais perigosa. Tantas vezes a percorri sem suspeitar de nada, há pelo menos vinte anos que a subo e desço e sempre pareceu inofensiva. Mas isso foi antes de forças misteriosas e altamente improváveis terem decidido que passaria a ser a morada de três ex-namoradas. Como uma não posso ver à frente, outra passou a amiga e a terceira estou a ver se recupero o tempo perdido, circular naquela zona tornou-se uma finta ao ataque de coração. Aquela rua ainda vai ser a minha desgraça.
Quando adiamos demasiado habilitamo-nos a que um dia seja demasiado tarde para termos seja o que for.
Certas despedidas no aeroporto e alguns telefonemas produzem em mim o mesmo efeito – que não chego para esta vida quanto mais para o mundo a girar.
Trabalho onze horas por dia, durmo quatro horas por noite, fumo que nem um cavalo, não tenho cão nem gato, nem ninguém me quer loucamente. Se não for feliz estou tramado.
Uma besta com as palavras, um coração mole nos actos.
Descia desgovernado a calçada num interessante diálogo consigo próprio. Um era Jesus, o outro o Conde de Avintes.
Poderia ficar por aqui. Cingir a minha existência às ligações existentes, à vidinha arquitectada, mas não tenho feitio para isso. Desconfio que para além de ter nascido com olhos de velho tenho um feitio definido. Mandar tudo à merda uma e outra vez. É preciso tomates para isso. Tomates, costas largas e resignação também. Mas é mais forte do que tudo. Mais além. Há sempre qualquer coisa à frente.
(...) Sentou-se ao computador com a barba de três dias e de peúgas. [panorâmica da sala de estar deprimente, uma televisão ligada sem som, um estendal com roupa a secar] Começou a ronda no Facebook pelas fotografias das amigas dos amigos. Enviou indiscriminadamente a mesma frase dezoito vezes. "Olá. Parece-me que temos muito em comum." [close up do monitor, som das teclas do computador]Amigável, breve e suficientemente misterioso, um achado de frase. A experiência dizia-lhe que uma em vinte mordia o isco. Esperava ter sorte esta noite. Uma noite de domingo insuportável, solitária e triste. Na verdade não variava muito de todas as outras noites. Tinha recebido uma mensagem de resposta da ronda anterior, mas descobrira entretanto que era casada, o que era pena porque era muito gira. Decidiu mesmo assim que daria uma resposta. Continuou a ver perfis. Deteve-se numa fotografia, não era muito atractiva mas o currículo e os amigos compensavam esse pormenor. Enviou-lhe a mesma mensagem. A coisa boa das feias é que costumam responder sempre.
Depois dos risos e das conversas, da comida na mesa, do sol, das crianças a correr e das que esperam para nascer, do peixe na grelha, das comemorações e discussões, das mensagens e palavras, do sexo e de tantas coisas ditas, depois de tudo, um silêncio precioso instala-se na casa, nas janelas uma tempestade a chegar, e o que resta, depois de tudo, são imagens.
... vou deixar uma mala feita à porta de casa.
Encontrava-se numa praça repleta de pessoas, balões no ar e bandeiras ao vento, e tudo a uma só voz a cantar o hino. Centenas de pessoas que cantavam sem falhar uma palavra. Deu por si a assistir a um momento extraordinário.
Muito falam as pessoas que nada têm a dizer.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
Agora e na hora da nossa morte - Susana Moreira Marques
Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES