A segunda encomenda chegou hoje inesperadamente na forma de um email. Quatro linhas apenas, um pedido de reunião e um número de telemóvel. Já tive casos amorosos que começaram por menos.
Estou cansado. As articulações roídas, os nervos esticados. Talvez seja domingo e a manhã inicie luminosa, a claridade em força na copa das árvores. Tranquilidade e desassossego em doses finas e letais. Hoje é mais uma manhã, ou a última manhã, do início da contagem decrescente. Tenho à espera livros e preços de bilhetes de avião para comparar. A Europa é um mapa e a crise joga a meu favor. Hoje é mais uma manhã de domingo e não tenho palavras que remedeiem o facto de todos os fins e recomeços serem duros e levarem-nos frases e histórias inteiras que nunca mais vemos. Não possuo palavras, apenas manhãs adocicadas de planos e contracurvas, enterros e construções. Tenho todas as manhãs em mim e um olhar endurecido pela responsabilidade de ver o dia a nascer sob os telhados e a copa das árvores.
Divido-me em pesar na balança cada uma das tuas palavras ou todas as minhas.
A passagem abrupta do Verão para as tempestades outonais, com as sarjetas entupidas de folhas e a tristeza a submergir a cidade, assemelha-se ao mesmo desconforto de uma mudança brusca de comportamento em alguém que guardávamos nos afectos como exemplar. Se a primeira mudança traduziu-se num ataque de falta de ar, os pulmões a explodirem como se fosse impossível o corpo adaptar-se à adversidade dos céus; a segunda teve como desfecho uma tentativa de respirar sofregamente e sentir o ar ser filtrado pelos buracos de um botão.
Uma vez recebi uma carta que ainda jaz em alguma gaveta que rezava assim. (...) Ainda agora espero que a porta abra e sejas tu. Que voltes atrás, que reconsideres. Gosto muito de ti, mas gosto ainda mais de mim.
Não deixa de ser estranho escrever um título de um texto e perceber que já o utilizámos antes. De tempos a tempos, lamento coisas, e, sinceramente, deveria lamentar mais. Só me fazia bem. Lamento não ter tido o tempo e o discernimento para ter estado mais com algumas pessoas e não ter registado as suas histórias em vez de confiar apenas na memória. Ontem disseram-me, vais esquecer coisas, é impossível recordares tudo, num prenúncio infeliz do que seria o dia de hoje. Lamento também, das palavras que escrevi, as que não foram correctas, por distracção ao outro, ou às regras que gosto tanto de me guiar mas que por vezes jazem por terra por falta de atenção à vida. Lamento muito.
Uma semana com dois domingos não pode ser coisa boa.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
Agora e na hora da nossa morte - Susana Moreira Marques
Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES