O meu amigo. O meu amigo da esquadra e o que já aprendi com ele. Hoje lá estive outra vez, a mais antiga de Lisboa, informou-me ele enquanto passeava os olhos pelas paredes, os cartazes antigos, as fotografias, os espólios de décadas. É pequena e decrépita e situa-se na zona do centro da capital onde mais ouço falar de reabilitação, obras, futuro. Diz-me que não anda naquelas ruas, a profissão dele não é boa para passeios desse género. Eu conto-lhe dos prodígios que testemunhei nas últimas semanas, os restaurantes que inauguraram, os filmes ao ar livre no largo, a noite em que a velha guarda do cinema compareceu em peso, as obras na casa que estou a acompanhar, os petiscos tardios. E ele conta-me do cheiro. O homem que chegou à esquadra, na sala ao lado da nossa que vislumbro pela porta de tinta descascada entreaberta, o homem espancado, a escorrer sangue, o corpo saqueado. O homem da poça de sangue no chão, tal era a quantidade, tal a enormidade de tudo. E ele, tantos anos de serviço, tanta coisa já vista, tanta pancada de tudo, sentiu pela primeira vez o cheiro a sangue.
You look ridiculous if you dance, you look ridiculous if you don't dance...
So you might as well dance.
Gertrude Stein
Acordo de madrugada e atiro-me ferozmente ao computador, despachar assuntos, trabalhar a competir com o relógio. Surgem avisos, telefonemas, mensagens no telemóvel, emails – a besta voltou, dizem-me. Enviam-me a gozar uma foto que apareceu nas redes, o sorriso falso que conheço bem, a pose estudada, só um papel bem desempenhado que desvanece imediatamente ao disparo da máquina para dar lugar à pessoa mal formada, à raiva, às palavras sem nível. Digo-lhes que não se preocupem, só me dá vontade de rir, sei bem a verdade e a cidade é grande. Continuo a trabalhar, há um pássaro que pousa na minha janela e as copas das árvores oscilam ao sabor do vento, não há realidades encenadas que não acabem quando o pano desce.
Nunca consegui fechar o ano em Dezembro. Até há dois ou três anos o ano fechava em Fevereiro e iniciava um novo ciclo em Março. Mais recentemente passei a fechar em pleno Verão. Não há um grande mistério à volta desta decisão, apenas uma vontade de organizar os meus anos segundos os eventos pessoais e não pela imposição do calendário. Chego agora à altura de arrumar os acontecimentos por secções – do best off ao abaixo de cão – como os jornais na edição da praxe da silly season.
O dia começou e não havia palavras. O aparelho mudo, um fanico nocturno, restou-me o telefone morto na mão e ainda pensei se era uma benção ou uma grande perda. Era preciso fazer uma chamada e comecei a pensar onde raio uma pessoa faz isso na era da internet e dos aparelhos de nova geração onde as cabines de rua desapareceram. Tentei num sítio e depois noutro e não tive sorte. Depois lembrei-me daquele café que recordava vagamente ter um telefone e fiz uma aposta comigo, se afinal tinha tão boa memória ou era um delírio. Só o café dava um romance inteiro, cheio de maquinaria e balcões dos anos 50, as histórias que já inventei com este espaço por cenário. Lá estava ele, o telefone preto, onde é preciso espetar o dedo indicador no aro e girar. Dois, um, nove, oito... e a cada vez, o aro a voltar ao ponto inicial. À primeira tentativa ninguém atendeu. E comecei a rir estupidamente, parecia que tinha voltado aos anos da minha infância, ir ao café ligar para os amigos, os desencontros, as chamadas perdidas. Para ligar novamente foi preciso pressionar nos quadradinhos pretos onde se pousa o auscutador para desligar a chamada e iniciar outra. Só faltou a voz da operadora. Outra vez o dedo no aro, dois, um, nove, oito... e à segunda tentativa ouço uma voz do outro lado da linha. Cumprimento jovialmente e do outro lado jorram as perguntas, se já me ligaram, se recebi alguma chamada, se ele ligou. Que não, que estou sem pio, não recebo chamadas, problemas técnicos. E depois sei, neste café de outras eras, com o ascutador no ouvido esquerdo, o fio do telefone a abanar no ar, que morreste às três da manhã. Continuei a falar normalmente, ri-me até, parece impossível mas é verdade, não domino a arte de passar da felicidade à tragédia em segundos. Preciso de tempo, é preciso engenho para tal, e digo-te, estava tudo a correr tão bem, demasiado bem agora pensando nisso, tinha a alegria de uma manhã de Verão estampada na cara de tal forma que não foi fácil compreender cada palavra e sílaba quando me falaram de ti, tu que encerras com a tua morte uma fase na minha vida. Foi só depois de beber um café, pagar a chamada e sair para a rua na canícula deste dia tão bonito que o aro do mundo me acertou em cheio.
Jantei uma vez na casa de um extraordinário russo, na Rússia. A conversa fazia-se num inglês fragmentário, mas expressivo. O seu interminável repertório de histórias subdividia-se em diversas categorias; às melhores ele chamava “true fake”, ou seja “mentiras verdadeiras”, que não eram sequer mentiras mas apenas tão boas que mereceriam sê-lo. Depois vinham as “fake fake”, que eram mentiras mesmo mentiras mas suficiente boas para merecerem ser verdade. Quando as histórias eram tristemente verdadeiras, o meu anfitrião encolhia os ombros, fazia uma cara quase de quem pede desculpas, dizia: “this, my friend, is true-true”. Verdade verdadeira, meu amigo; o mais baixo da escala. (...)
Foi o tempo que bastou para numa conversa ao telefone com uma pessoa desconhecida cruzarmos histórias e descobrir a careca a uma terceira numa pulhice ocorrida há três anos. Três anos de equívocos e impunidade, e em duas horas ficou o caso esclarecido. Bem dizia o outro que a arte da conversação era a mais sublime de todas.
Para vencer uma guerra só existe uma solução – ser mais inteligente, forte e persistente que o adversário.
Na Sábado – 'POLÍCIA JUDICIÁRIA ENTRA NA EDP RENOVÁVEIS. Não, não se trata de mais uma busca, mas sim da discreta contratação de Paulo Bernardino, um histórico da Polícia Judiciária (PJ) que prendeu Otelo Saraiva de Carvalho. O antigo operacional da PJ, que também passou por Macau, é, há meses, o conselheiro de segurança da empresa. Antes, esteve na PT e na Taguspark'. Contratação discreta porque o ordenado deste senhor na Taguspark fui aumentado 98% pelo Rui Pedro Soares, lembram-se?
Há uns anos, descobri o António Zambujo e fiquei rendido. Trabalhei muitas horas ao som da sua voz, troquei algumas mensagens com ele sempre na qualidade de admirador confesso, coisa que raramente posso mencionar em relação a outros artistas. Nessa altura, alguém das minhas relações ofereceu-me um bilhete e numa noite amena rumamos em direcção ao São Luiz para um espectáculo memorável. Infelizmente tudo me levava a desconfiar que o meu acompanhante não era uma pessoa de boa índole, e, mais tarde, confirmei mesmo que a pulhice se estendeu até ao próprio convite em si. O resultado foi ter deixado de ouvir o Zambujo durante anos, uma associação inconsciente a algo que desprezava profundamente, uma assossiação de ideias injusta mas à qual não consegui fugir. Alguns anos depois, e com um processo a correr nos tribunais comprovando que o meu asco moral não era desprovido de razão, descubro-me a meio de uma tarde ensolarada no escritório a cantarolar uma das minhas canções preferidas, e percebo, finalmente, que com a aproximação à justiça dos tribunais também a justiça a Zambujo foi alcançada – caramba, que voz, como foi possível ter-me afastado disto tanto tempo.
Comecei por pensar que estava a sofrer do clássico sídroma da página em branco mas depois percebi que não era isso. Vagueei pela casa em busca de qualquer coisa que não conseguia definir até encontrar um velho caderno de desenho de folhas grossas em formato cavalete. Abandonei-o e voltei à busca. Nos rolos de cartão antigos que viajaram do antigo atelier de arquitectura para o meu escritório encontrei finalmente o que procurava. Desenrolei folhas da altura de um homem que só no chão consegui estender depois de afastar móveis e finalmente peguei na caneta. Escrevi e risquei até sentir os joelhos a ranger, um cotovelo a chiar e a cabeça a pesar. Um mapa de vida não cabe numa folha qualquer.
Há uns anos, perante um dilema, se apagava ou não um texto na internet, alguém respondeu-me que o melhor era não apagar, haveria sempre de ficar uma cópia em cache tornando inútil o gesto. Por algum motivo nunca esqueci essa conversa aparentemente inócua. Agora, à procura de uns textos específicos e incriminatórisos desse alguém, é exactamente em cache que recupero os que apagou.
Ulisses é uma obsessão que me acompanha há muito e que do ponto inicial viajou para os vários ulisses, espelhos de uma história eterna – entre a viagem, a das letras, e a grande odisseia maior que desvenda. Ulisses, que depois de combater inimigos e perigos vários, regressa a casa e aos que ama – Penélope, a amada, e Telémaco, o filho. Poderia dizer que a minha obsessão seria a desculpa perfeita para chamar Ulisses a um futuro filho, se um dia o desejar, mas seria ainda pior chamar Telémaco se pretendesse fugir ao óbvio. Por vezes é difícil distinguir entre a ficção e o que é razoável, mas no fundo poderíamos resumir tudo a uma noção de (mau) gosto, um nome feio não o deixa de ser apenas por o escolhermos.
Há exatamente 70 anos, a atividade dos espiões alemães em Lisboa e no Estoril atingia o seu apogeu. Recuemos no tempo para ver como, em duas moradias, foi criada uma estação radiotelegráfica que abarcava praticamente todo o hemisfério ocidental.
Stop spreading lies about me and i'll stop telling the truth about you.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
Agora e na hora da nossa morte - Susana Moreira Marques
Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES