A chuva fraca da manhã transformou-se em bátegas, ia o dia a meio, o céu a desabar em cascata, o apito do vento por entre as árvores e os prédios. Para não contrariar a minha preferência por pneumonias, em troca da obrigação de arrastar guarda-chuvas comigo, estou na rua à mercê da tempestade. Acabo por abrigar-me na entrada de um prédio numa praça à espera que a chuvada sossegue; já nem é pelo corpo, é pelas gravatas que já não aguentam tanta molha. Na praça não se vê vivalma excepto um rapaz sentado num banco de jardim a falar ao telefone. Está aflito, a conversa não está a correr bem, luta para provar o seu ponto de vista. Chove muito, muito, e o rapaz já é todo ele água e desespero. Começo a ter pensamentos muito sérios sobre o bem-estar do rapaz. Tento recordar-me se já alguém morreu electrocutado a falar ao telefone numa tempestade. Levar com um raio em cima já aconteceu. A sorte dele é estar ao lado de uma árvore. Ou será ao contrário? Não devia estar perto da árvore. Felizmente deve existir pára-raios nos edifícios à volta. Digo eu. Imagino que sim. Neste ponto da história espero uma tragédia a qualquer momento, um choque eléctrico, um raio, um ataque cardíaco, umas eleições antecipadas. Já estou por tudo e a minha gravata encolhe-se, já sabe o que a espera com um tempo destes. O rapaz já tem o cabelo colado à testa, o casaco ensopado, e do outro lado continua sem resposta favorável. Estou quase a oferecer-lhe os meus préstimos, sempre fui um ás em discussões, em alguma coisa haveria de ser bom, mas agora o rapaz está em silêncio, ouve com atenção, uns longos segundos e acaba a dar a derradeira sentença com os pulmões em pleno – Olha, vai à merda, ouviste? Eu amo-te, EU AMO-TE!!!!
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
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Caixa para pensar – Manuel Carmo
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