M.
Fuma cigarros de enrolar, gosta de tabaco fresco numa tradução selvagem do inglês, mas a certa altura pede para fumar dos meus. Fortes, as saudades que tem do tabaco forte da Alemanha. Por causa dos cigarros acabamos na varanda com vista para o vale, prédios, janelas com luz, igrejas e ciprestes. Senta-se no balcão da varanda só com uma perna a prender a fragilidade do corpo ao prédio, ao estuque, aos terraços e telhas. Isto desequilibra-me, apesar dos meus dois pés na terra. Está longe de casa mas já esteve muito mais. Por causa do tabaco, descreve-me a mãe e os aeroportos onde se podia fumar e onde agora tudo é demasiado proibido. Andou pela América do Sul, países e fronteiras, e numa cidade onde era suposto ser só uma passagem, ficou presa a um animal e um hospital. Sozinha, internada com um parasita num pé que começou a comer-lhe a carne, numa Venezuela profunda onde só recebia soro e antibiótico. Os dias a passarem e ela a fumar escondida na casa-de-banho. Depois, por fim, fumava na varanda do hospital, com uma perna a segurar o corpo à alvenaria. Haveria de sair dali e noutro país matar o bicho, salvar o pé e reencontrar rostos conhecidos.
F.
É belo, sabe-o, e o corpo não denuncia a idade, parece mais novo. Na realidade é ainda bastante novo. Cinco anos no Dubai, a servir em aviões, e um dia surge uma oportunidade irresistível. Perde-se de amores pela ideia e decide fazer as malas. Aterra no Brasil na senda de montar um negócio. Fica por lá uns anos, apaixona-se pela música. Uma festa numa noite de calor perfeita, um antigo bordel recuperado, lanternas no jardim e pessoas a dançar. O negócio naufraga. Perde tudo. Volta à cidade e tenta sobreviver depois de tantos anos fora. Perder tudo significa neste caso não ter nada, absolutamente nada entre mãos. Faz festas ao cão da casa, gostava de ter um, mas um animal é uma responsabilidade que não pode permitir a si mesmo neste momento. Apesar do revés da fortuna é optimista, não pressinto rancor, culpas ou remorso. Encara apenas como um risco que decidiu correr. Para correr é preciso arriscar.
A.
Chegou à cidade acompanhada de amigos, com planos e objectivos. Passaram meses e quando todos regressaram ela decidiu ficar. Diz-me que comprou uma passagem de regresso, mas tenho a sensação de que talvez não seja esse o final da história. Conta-me o percurso do bisavô alemão que chegou ao Brasil quando a Segunda Guerra acabou e estabeleceu-se no sul. Casou e teve filhos. Um dia foi embora. Para outra cidade, outro casamento, outros filhos. Na verdade, não sabe se foi assim que aconteceu. Parece que vinha do lado mau da guerra, os derrotados, os que perseguiram. Simplesmente nunca mais tiveram notícias, ficou um apelido invulgar e uma ausência dolorosa. Talvez conte esta história porque no íntimo sabe que também ela não vai regressar. Quando a ditadura militar proibiu que falassem alemão, quando queimavam livros, quando tudo parecia sem sentido, falavam-lhe na língua materna e ela dominava a linguagem, agora diz que vacila a falar, perdeu a fluência. Talvez volte, talvez não.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
Agora e na hora da nossa morte - Susana Moreira Marques
Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES