August Sander, Wollenburg,1938
Todos as manhãs chego acompanhado do grasnar feroz das aves. Não é particularmente agradável, são gritos no ar, na copa das árvores e nos telhados. É minha convicção serem araras as culpadas, mas pode ser tudo pura imaginação, nunca as vislumbrei para confirmar. Atravesso o jardim e as ruas de ouvidos atentos, nariz espetado no ar, a esbarrar em pessoas tão estremunhadas quanto eu. Ao fim do dia, a mesma coisa. Só as deixo de ouvir na boca da avenida, o bairro das gaiolas nas costas. Dou ordens aos pés e liberto a cabeça e os olhos. Uns que trabalhem para o prazer dos outros, toda a vida andámos assim. Meto a eito em direcção ao segundo jardim, passando pelo velho cemitério inglês. Cumprimento sempre a Charlotte, segunda campa à direita, que se não me vê passar fica preocupada. Um dia destes, esse tempo que nunca mais chega, não passo só por ela, entro pelo portão de ferro, e suspendo o tempo para perguntar-lhe como corre a vida. Ou talvez convide a minha amiga para dar pão aos patos no lago, sempre lhe fazia bem apanhar ar. Vejo a primavera a chegar, mais perto a cada dia que passa, de mansinho vai-me aparecendo no caminho. Quando me vê mais cansado ou sisudo faz-me cócegas. No outro dia mordeu-me uma orelha.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
Agora e na hora da nossa morte - Susana Moreira Marques
Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES