I.
Recebo um email de alguém que não reconheço o nome. Duas linhas apenas: A partir do dia de hoje este já não é o meu email. Peço-vos que reencaminhem as vossas mensagens para o email... Faço um search pelos emails todos. Nada. Procuro o nome da pessoa na lista do telefone. Zero. Procuro mais destinatários na mensagem. Nenhum. O email é dirigido apenas a mim. Ainda não nos conhecemos e invade-me a sensação de estamos a acabar qualquer coisa.
II.
Debaixo da porta deixam-me um recado escrito no verso de um flyer de uma festa. Em quatro linhas escritas com esferográfica preta cabe toda a mensagem. A apresentação, o nome, onde mora, e dois destinos possíveis para deixar as calças beges de homem que deixou cair e voaram para o meu terraço. Escolho uma das duas hipóteses de entrega do objecto voador e assim procedo. Nunca conheci a pessoa nem ela deixou cair mais nada.
III.
Telefonam-me três dias antes a relembrar-me para ligar-lhe. No dia em questão telefonam-me outra vez. Não te esqueças, dizem-me. Peripécias várias fazem com que o dia passe a correr e eu sem fazer a maldita chamada. À noite lembro-me e estou dentro de uma sala de cinema às escuras. Nada a fazer. A partir daí passo os dias a ligar-lhe. Às horas mais diversas, quando acordo, quando vou fumar um cigarro, entre trabalhos. Nunca atende, embora toque insistentemente. Dão-me coordenadas precisas, horas em que atende de certeza. Até agora sem sucesso. Os dias passam. Não tem caixa de mensagens. Tem 89 anos. Poderá ser o meu último telefonema. Vou continuar a ligar até que atenda.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
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Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES