Demorámos longos minutos a perceber se era a missa certa. Percorri as filas de bancos à procura de rostos conhecidos e mesmo quando os encontrei não fiquei convencido. Poderiam estar ao engano também. Mesmo assim decidimos ficar naquela missa. Logo se veria se ainda sou capaz de decisões sapientes. Passou um ano e por esse motivo aqui estamos. Venho à espera de discurso a condizer, não estou preparado para um padre a contar uma história de adultério, ou sexo desbaratado nas palavras dele. Depois há a senhora pequenina que abre uma portinhola de talha dourada no altar. Duas vezes marinha ela pelo altar e aquilo é mesmo perturbador. Começo a considerar estar na pior missa da minha vida. É inevitável distrair-me, a olhar para o tecto da basílica com olhos de carneiro mal morto, a pensar noutra missa que perdi e não há maneira de me perdoar. Uma missa em que o padre explicou ser a cerimónia para os vivos, o defunto já lá ia à vida dele (passe a frase parva de duplo sentido). A única missa que nunca poderia ter perdido, quem falava detinha a razão, as palavras eram a minha despedida. Conhecendo eu o defunto como conhecia, o padre estava certo. Estivesse ele presente na missa e tinha insultado o funeral de alto a baixo, não era pessoa para estar calado, ainda para mais sendo a festa dele. Palavras é que não lhe iriam faltar. Enfim. Não tendo estado presente contaram-me como tinha sido, mas foi a frase final, terias gostado das palavras, que coroou a minha grande falta e tristeza pela ausência. Enfim, enfim. Voltando a esta missa. A este flagelo actual. Esforço-me por prestar atenção à história pecaminosa de luxúria e redenção. Amén, corpo de Cristo, joelhos e benzer, já não sei se por esta ordem, mais a senhora do altar. Mas agora percebo que o pecado era só parte do enredo, afinal do que se falava era da mentira e do erro. Da acusação falsa, do colmatar a falha com a acusação néscia, e, coisa mais preciosa, que a idade não retira o poder ao erro, ele poderá ser cometido a qualquer altura e por todos. No fim dou a mão à palmatória e penso que, acaso ou não, até foi o discurso mais apropriado para este dia. E até o adultério fez sentido.
a minha língua é a pátria portuguesa
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