A senhora do café aproveita a minha entrada para fazer a piada. Temos uma troca de graçolas diárias combinada para confundir o quotidiano. Faz sinal com a cabeça para uma mesa de um casal de velhotes. Estão aqui desde o meio-dia, são cinco da tarde. Ele é surdo, ela tem alzheimer. Que lhe parece? O melhor é marcar hotel. Rimos. Sento-me a tomar o café com vista para a parelha improvável. Ela tem oitenta e muitos anos, ele já fez noventa. Ele era advogado e continua a ser o procurador dela. Discutem animados um caso antigo, um casamento que se desfez. Aquando do divórcio a mulher ficou sem nada. Antes do 25 de Abril era comum neste tipo de situações, embora o divórcio ainda fosse raro. Ele replica dizendo que era um casamento em regime de separação total de bens. Isso não era separação total de bens, era um roubo, diz ela. Para doente de alzheimer é mais lúcida que muita gente que conheço, penso eu a tentar esticar o café. Para surdo, ele ouve-a sem perder palavra. Depois falam de uma casa que parecem conhecer bem. E de pessoas e memórias em comum. A mãe dele era uma pessoa de má índole. Na realidade era mesmo má, palavra deles. Parece que estragou os planos e as vidas de muita gente. Não fosse a mãe sem coração e teriam casado, revelam os dois no café numa tarde de sol.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
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