Quinta-feira, 14 de Abril de 2011

 

A senhora do café aproveita a minha entrada para fazer a piada. Temos uma troca de graçolas diárias combinada para confundir o quotidiano. Faz sinal com a cabeça para uma mesa de um casal de velhotes. Estão aqui desde o meio-dia, são cinco da tarde. Ele é surdo, ela tem alzheimer. Que lhe parece? O melhor é marcar hotel. Rimos. Sento-me a tomar o café com vista para a parelha improvável. Ela tem oitenta e muitos anos, ele já fez noventa. Ele era advogado e continua a ser o procurador dela. Discutem animados um caso antigo, um casamento que se desfez. Aquando do divórcio a mulher ficou sem nada. Antes do 25 de Abril era comum neste tipo de situações, embora o divórcio ainda fosse raro. Ele replica dizendo que era um casamento em regime de separação total de bens. Isso não era separação total de bens, era um roubo, diz ela. Para doente de alzheimer é mais lúcida que muita gente que conheço, penso eu a tentar esticar o café. Para surdo, ele ouve-a sem perder palavra. Depois falam de uma casa que parecem conhecer bem. E de pessoas e memórias em comum. A mãe dele era uma pessoa de má índole. Na realidade era mesmo , palavra deles. Parece que estragou os planos e as vidas de muita gente. Não fosse a mãe sem coração e teriam casado, revelam os dois no café numa tarde de sol.



publicado por afonso ferreira às 00:14 | link do post | comentar

11 comentários:
De dg a 14 de Abril de 2011 às 10:12
grande pinta - porque é que os relatos do quotidiano, simples e naturais, (nos) acrescentam sempre algo? talvez porque aprendemos sempre alguma coisa e sem esforço. excelente post.


De afonso ferreira a 19 de Abril de 2011 às 02:20
Obrigado pelo comentário, dg.


De Maria Pascoal a 14 de Abril de 2011 às 15:00
"...ele é surdo, ela tem alzheimer.Que lhe parece?..."

Não tendo nada contra mas tb não tendo nada a favor..a mim parece-me lindamente...um "mais que perfeito" encantamento..e duradouro qb!

Absolutamente Genial, este post!!!!

Maria Pascoal


De afonso ferreira a 19 de Abril de 2011 às 02:20
Obrigado, Maria.


De geriatriaaminhavida a 14 de Abril de 2011 às 17:03
Velhotes é cá comigo, não fosse eu trabalhar numa instituição de idosos.
Quem me dera que os doentes de Alzheimer, lá do Lar estivessem assim tão lúcidos. Parabéns pelo destaque do sapo.
Se não se importar virei mais vezes


De afonso ferreira a 19 de Abril de 2011 às 02:21
Não só não me importo como agradeço a sua leitura. abraço.


De Naçao Valente a 14 de Abril de 2011 às 22:43
Para além dos temas que fazem manchete, do diz que diz, das opiniões dos opinadores, esta é vida como ela é, na complexa simplicidade do quotidiano.

Gostei do que li. Parabéns por merecer destaque e parabéns ao sapo por o ter destacado.
MG


De afonso ferreira a 19 de Abril de 2011 às 02:24
Obrigado eu por aqui ter passado, MG.


De SE a 15 de Abril de 2011 às 22:25
Um encantamento que resiste ao tempo, apesar de não ter tido força ou oportunidade para se impor de outra forma. Talvez não precisasse e se mantenha por isso mesmo. Agradável encontrar o amor, o apreço, o carinho neste seu post que reflecte as emoções vividas em idade avançada.


De afonso ferreira a 19 de Abril de 2011 às 02:23
Se chegar a velho com o alzheimer e a surdez destes dois, a vida não terá corrido mal de certeza.


De Cronicamente Afónica a 29 de Abril de 2011 às 17:16
Delicioso! Como é possível que de uma situação - aparentemente- cómica, sai um desfecho destes?
Adorei a formo como descreve ao diálogo deles. É, sem dúvida, um dos melhores que já li por aqui.
Bem-haja!


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