Percorreu o pátio da villa em passos lentos e descontraídos por entre o bando de crianças a correr. O sol inundava a casa grande de chão de blocos de pedra irregular. Entra na casa pelas portas altas de madeira e sente a frescura no interior. A villa está repleta de convidados, é preciso confirmar se está tudo pronto para a festa. Alguns ainda estão nos quartos a tentar fugir ao calor intenso. Pequenos grupos de pessoas conversam em voz baixa ao sabor do long drink. Entra na cozinha e ouve o riso das crianças no pátio e passos no andar de cima. Decide verificar se a comida está pronta. Prepara um gin tónico com muito limão e fica por instantes na porta a contemplar as bugavílias e o mediterrâneo no horizonte. Sente o calor tépido, as pequenas correntes de ar entre o seu corpo e o vestido de musseline branco com pequenas flores.
Vai tudo correr bem, pensou. Quando volta à cozinha um pequeno descuido causa o estilhaço do copo no chão de pedra. A bebida escorre pelo vestido e ela sente o líquido gelado nas pernas. Varre os despojos do acidente e atravessa novamente o pátio em direcção ao quarto. Passa por um estranho trio visivelmente embriagado e sente o vestido a secar e uma longa mancha amarela a surgir no tecido. Contorna o pátio e entra na casa contígua. Precisa de ir ao quarto no átrio de entrada trocar de roupa. A porta está apenas encostada e ao entrar acende um cigarro. Encontra o que quer, um vestido verde água. Passa pela cama de dossel e percebe que A. está deitada. Não simpatiza particularmente com ela, em tempos tiveram de trabalhar juntas e não ficaram boas recordações. Não a vê, os panos estão corridos, percebe que está acompanhada e apenas murmura
"Sou eu, desculpa, vim buscar uma coisa, vou sair já."
Lá fora as pessoas falam, comem, riem. Ao sair ouve a voz dele na cama de dossel
"Nem percebeu que era eu. Aliás, durante estes anos todos, nunca percebeu nada".
O seu coração pára de bater, os três passos que a separam da saída são vinte anos passados ao lado daquelas duas frases. Volta atrás com passos bruscos, fecha as portadas da janela com grades, cerra os cortinados, atira o cigarro para cima dos panos da cama, sai no momento em que a primeira labareda irrompe e tranca a porta à chave.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
Agora e na hora da nossa morte - Susana Moreira Marques
Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES